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Tudo parecia ir de encontro aos seus sonhos: o preconceito, as estatísticas, o medo... Mas nada disso conseguiu frear Márcia Dailyn, que há 26 anos se tornou a primeira bailarina trans do tradicional Theatro Municipal de São Paulo.
(Esta reportagem faz parte de uma série especial do g1 para o Dia das Mulheres, celebrado nesta terça-feira, 8 de março, sobre Mulheres Pioneiras. Veja a série completa aqui)
Influenciada pela mãe, Selma, ex-professora de aeróbica, quando criança Márcia se encantou pelo mundo das artes e da dança. O pai, o eletricista Lau, no entanto, não conseguiu entender tudo que acontecia.
Márcia Daylin, quando criança, no colo da mãe Selma — Foto: Arquivo pessoal
“Eu nunca tive dúvidas que era menina, desde criancinha. Minha mãe percebeu logo, e me puxou para uma conversa quando eu tinha 11 anos. Mãe é mãe, não é? Mas meu pai...”, conta, com lágrimas nos olhos. "Ele brigou com a minha mãe, se separaram. Jogou a culpa nela, como se ela tivesse me educado errado. E ficamos afastados um bom tempo", completa.
Com o tempo, a cidade de Jales – que fica a mais de 580 quilômetros de São Paulo – ficou pequena para as ambições de Márcia. Ao ver um anúncio de rodapé em uma revista sobre dança, resolveu se inscrever para participar da seleção para a então Escola Municipal de Bailado, do Theatro Municipal, que em 2011 passou a se chamar Escola de Dança de São Paulo.
Márcia Dailyn com as sapatilhas que utilizou no início de sua carreira. — Foto: Marcelo Brandt/g1
Ela foi chamada para a audição e não pensou duas vezes antes de enfrentar a viagem de quase nove horas em um ônibus para a capital. Tinha apenas 17 anos quando respondeu para Lúcia Camargo, que era a diretora do corpo de balé, qual era seu objetivo ali:
Aprovada, sem nem direito saber onde iria morar na cidade grande, ela foi apresentada para os colegas de aula dois dias depois pela diretora: “Esta é Márcia, nossa bailarina”.
Mas ali, nem tudo foram flores. "Tive muitos professores, coreógrafos, que me tiraram da sala de aula. Não quiseram me dar aula nem me coreografar porque sou transexual. Mas eu estava sempre ali, impecável, pronta para aprender. Digna. Claro que às vezes me acompanhava um chorinho embargado", confessa.
Em sua trajetória, Márcia diz que precisou pisar em muitas pedras. "Pedras que machucam. Mas pedras podem virar pepitas. A pepita pode ser lapidada e virar uma preciosa joia”, diz a artista, que coleciona conquistas.
Estudou ainda por dois anos na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville (SC), teve aulas na Royal Academy of Dance e na Cuba Ballet, e ainda teve a oportunidade de dividir o palco com grandes estrelas, como Ana Botafogo.
Márcia Dailyn, primeira bailarina trans do Theatro Municipal de São Paulo — Foto: Marcelo Brandt/g1
Fez as pazes com o pai no dia em que mostrou a ele a carteira de trabalho com o registro profissional de atriz e bailarina. "Mostrei a ele, e nos abraçamos. Disse a ele que sempre seria a filha da dona Selma e do Lau. E ele se foi um pouco depois disso, em um acidente", diz.
Hoje, além de atriz da Cia de Teatro Os Satyros e colaboradora da SP Escola de Teatro, Márcia Daily ainda acumula os títulos de diva da Praça Roosevelt e Musa da Acadêmicos do Baixo Augusta.
"A mulher é uma dádiva, a mulher é uma divindade. Eu amo ser mulher e não me arrependo de nada do que eu fiz: mil plásticas e silicone... Mas hoje eu olho no espelho, e esse é o corpo que eu queria ter e o corpo que eu sempre desejei ter."
Márcia Dailyn, musa do bloco Acadêmicos do Baixa Augusta, no desfile do Carnaval em 2020 — Foto: Arquivo pessoal
"Tenho 43 anos. São 43 anos de luta e militância. Eu estar viva, no nosso país, já é resistir", reconhece Márcia.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e transexuais (Antra), o Brasil é o país com maior número de assassinatos de pessoas trans e travestis do mundo. Entre 2008 e 2021, foram, em média, 123 assassinatos por ano.
Durante todo o ano de 2021, o Brasil registrou 140 pessoas trans assassinadas no país, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 5 homens trans e pessoas transmasculinas, conforme reportagem publicada pelo g1, em virtude do Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado no dia 29 de janeiro.
"A nossa classe LGBTQIA+ é a mais bombardeada. O nosso país é o que mais mata os nossos corpos", conta. Mas, apesar de ter sobrevivido à violência, a artista não deixa a luta de lado.
Há dez anos, Márcia atua no projeto SP Transvisão, que promove uma série de ações voltadas para o debate sobre a tolerância e a diversidade, além de valorizar a cultura e o universo LGBTQIA+. Em cada edição, é oferecido ainda um jantar para a população mais carente. "Damos comida e acolhimento", explica.
Márcia Dailyn dança no palco da Cia Teatral Os Satyros — Foto: Marcelo Brandt/g1