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Na sala de espera do ginecologista, mulheres de todas as idades. Jovens, idosas, grávidas. O médico chama pelo nome e elas entram, uma de cada vez, numa rotina comum.
De repente, entre os tantos nomes femininos, um masculino ecoa. Os olhares se voltam. Dessa vez, o paciente é um homem, que tenta seguir até a porta sem chamar mais atenção.
O ambiente é tomado por sussurros, que logo ficam só do lado de fora. Ele entra na sala, fecha a porta e a consulta começa em meio a um tom de constrangimento.
O cenário pode causar estranheza, mas não deveria. O paciente é um homem transexual, que nasceu com sistema reprodutor feminino, tem útero e precisa se cuidar como qualquer pessoa.
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No entanto, o medo de situações constrangedoras, como a citada acima, o despreparo de profissionais e o preconceito fazem com que esse público deixe a saúde ginecológica de lado.
Outra preocupação é com o ciclo menstrual, que pode continuar ativo entre alguns homens trans. Para eles, banheiros em que o mictório é a única opção são sinônimos de desrespeito e vergonha.
De acordo com a ginecologista Luciana Pistelli, cuidar da saúde ginecológica é indispensável e cabe ao profissional de saúde se informar para garantir os cuidados específicos.
No Dia da Visibilidade Trans, celebrado neste sábado (29), o g1 destaca relatos de pessoas transexuais do Alto Tietê e mostra que cuidar da saúde independe de gênero e é direito de todos.
Constrangimento ao cuidar da saúde
Fernando é diretor do Núcleo Transexuais Transgeneres e Travestis de Mogi das Cruzes — Foto: Fernando Silva Santos/Arquivo Pessoal
Fernando Silva Santos é um homem transexual. Isso significa que nasceu com o sexo biológico feminino, mas tem uma identidade de gênero masculina. Ele faz tratamento hormonal de transição de gênero há oito anos e, além do endocrinologista, precisa de exames ginecológicos de rotina.
Porém, um cuidado que deveria ser visto com normalidade, é cercado por constrangimentos. Afinal, infelizmente, nem todos os profissionais da saúde entendem que, apesar do gênero masculino, o paciente precisa de uma atenção que, normalmente, é associada ao feminino.
Por isso, para fazer o Papanicolau, por exemplo, exame conhecido como sendo de exclusividade das mulheres, ele tem um ritual obrigatório. Uma das formas que encontrou para se proteger foi buscar atendimento na rede privada, na tentativa de ter mais segurança na hora do atendimento.
O Papanicolau, também chamado de preventivo, é essencial para o diagnóstico do Papilomavírus Humano (HPV), que é o maior causador do câncer de colo de útero. Sem realizá-lo, homens transexuais correm o risco de descobrir a doença tardiamente.
Outro constrangimento está presente na hora de encontrar o médico ginecologista. Seja dentro da sala ou do lado de fora, a desinformação e o preconceito podem fazer com que o paciente transexual não se sinta acolhido e, consequentemente, se afaste.
“Acontecem situações corriqueiras. Por exemplo, você está em um ambiente de acesso só às mulheres, gestantes, aí chega um casal. Você está conversando com o marido da gestante, ela passa pela consulta e, logo em seguida, a médica chamar seu nome”.
Momentos como esse podem até passar rápido, nunca são esquecidos e ainda colocam a saúde em risco. Sem acesso ao atendimento, pessoas trans não recebem o tratamento adequado e acabam expostas, como explica Santos.
“Tenho relatos de homens trans que tem orientação sexual gay. [Isto é], esses homens trans se relacionam com homens cisgêneros. Por isso, acabam misturando hormônios por não ter a orientação de um ginecologista, especialista, que possam orientar e até oferecer uma forma anticonceptiva”.
“Esses meninos acabam, muitas e muitas vezes, com dúvidas. Fazem misturas de remédios, trocam hormônios, usam hormônios de forma clandestina e sem acompanhamento. Isso acaba gerando consequências, já que tem toda uma mudança hormonal que pode afetar e muito a questão do útero”.
Com o auxílio de um espéculo, o ginecologista pode observar o colo de útero do paciente — Foto: Divulgação
Pietro de Medeiros é um dos jovens transexuais que, aos 23 anos, só passou por uma consulta com ginecologista. Ele utiliza a rede pública de saúde e acredita que nem mesmo os sistemas ligados ao atendimento estão preparados para receber uma pessoa trans.
“Pelos meus documentos já terem sido alterados o sistema acaba dando alguns problemas. Um exemplo foi quando tentei marcar exames de rotina na minha primeira ida ao médico. Eu já estava com 22 anos”, lembra o jovem.
“Tentei marcar os exames em nenhum deles eu fui chamado. Atribuo isso a esse conflito. De acordo com a lei, em nossa proteção, não pode haver nenhum documento que faça menção sobre sermos ou não pessoas transexuais. Então, imagina que é como se um homem cisgênero tivesse tentando marcar uma consulta ginecológica”.
Para Fernando, que é diretor do Núcleo de Transexuais, Transgeneres e Travestis Mogiano, além da orientação da própria população trans, falta, principalmente, a capacitação de profissionais e estabelecimentos de saúde.
“Nós precisamos, urgente, dessa especialidade. Alguns homens trans não gostam de falar desse assunto abertamente. É um assunto que gera desconforto para nós. Ir ao ginecologista, a gente precisa tirar essa imagem de que é algo ruim, que vai ser sempre constrangedor”.
Direito que vira privilégio
Sophia é uma mulher transexual e faz parte da coordenação do Fórum LGBT de Mogi das Cruzes — Foto: Sophia Falcone/Arquivo Pessoal
A desigualdade também entra nessa discussão. Isto porque as pessoas trans que dependem da rede pública ficam ainda mais limitadas na hora de decidir onde querem buscar atendimento médico. Muitas vezes, isto sequer é uma opção e o cuidado é feito pelo profissional que estiver disponível.
Sophia Falcone, de 52 anos, diz ser privilegiada por isso e lamenta que o acesso à saúde tenha que ser tão difícil para a maioria desse público. Ela é uma mulher transexual, fez redesignação de gênero – conhecida como mudança de sexo – e já procurou por atendimento ginecológico.
“No último ginecologista que eu fui ele disse: ‘eu, realmente, não sei muito bem como tratar você, porém, vou procurar saber e vou te tratar da melhor forma possível’. Achei isso super legal, porque demonstrou que a pessoa, apesar de não ter conhecimento, que obviamente ninguém nasce sabendo, ele se prontificou”.
O atendimento ocorreu na rede privada. Sophia, que faz parte da coordenação do Fórum LGBT Mogiano, destaca que é comum ouvir relatos sobre a dificuldade de encontrar profissionais preparados para o atendimento de pessoas transexuais na rede pública.
“Minha preocupação, quando eu penso nesse privilégio que eu tenho, nessa condição de ter esse plano de saúde, é nas pessoas que têm que enfrentar o sistema de saúde. Não sei como funciona lá. Não é meu lugar de fala. Eu vejo as pessoas falando que é muito difícil, que é complicado”.
O g1 questionou os municípios do Alto Tietê se possuem unidades de referência para o atendimento de pessoas transexuais. Ferraz de Vasconcelos e Mogi das Cruzes informaram que não. Itaquaquecetuba, Poá e Suzano pontuaram que contam com unidades do Serviço de Atendimento Especializado (SAE) , que é dedicada ao atendimento de pessoas com HIV/Aids e que também atendem a comunidade LGBTQIA+.
As cinco cidades também disseram que esse público tem acesso a clínico geral e ginecologista para atendimento de rotina na rede básica e que os profissionais de saúde passam por capacitações constantes, onde também são orientados sobre o respeito ao nome social. Arujá, Biritiba Mirim, Guararema, Salesópolis e Santa Isabel não responderam.
“Eu sei que aqui em Mogi nós não temos um ambulatório que trate pessoas trans. Essas pessoas têm que ir para o CTA de Guarulhos. É uma situação complicada, porque muitas vezes essa pessoa não tem condições de ir, condições financeiras. Perder o dia inteiro de serviço para ir em uma consulta”, lamenta Sophia.
Lyan é um homem trans e reclama da falta de acessibilidade para pessoas transexuais em banheiros — Foto: Lyan Silva/Arquivo Pessoal
Os homens trans que optam por não fazer hormonioterapia ou retirar o útero – ou que estão aguardando pelos procedimentos – podem continuar menstruando. Para quem prefere usar o banheiro masculino, acaba enfrentando transtornos sérios quando o período chega.
Em alguns ambientes, como bares e casas noturnas, é comum que o sanitário masculino tenha apenas mictórios. Sem cabines com vasos sanitários, urinar ou trocar um absorvente, por exemplo, se torna impossível. Situação que já foi vivida por Pietro.
“Sempre fui muito discreto quando ia trocar absorvente e com isso nunca cheguei a ter um problema direto com as pessoas além de quem já me olhava feio independente disso. Mas, um problema que sempre tive, é que os banheiros masculinos não estão preparados pra receber pessoas como eu”.
Lyan Silva é cantor e também passa, com frequência, por momentos parecidos. Nos bares em que se apresenta, é comum deparar com olhares de julgamento quando vai ao banheiro. Um ato simples, natural a todo ser humano, vira motivo de desconforto.
“Só que, em outros locais, eu uso masculino. O banheiro do shopping eu uso sem medo, mas teve vezes que eu precisei usar e não ter. Não ter condições de usar, porque só tinha mictório, tudo aberto. Eu tenho muito bloqueio. É impossível. Já quis ir ao banheiro e não tinha onde ir”, conta.
O músico destaca um desses episódios, quando precisou ir ao sanitário de uma casa de shows. Naquela noite, ele estava se apresentando. Ao tentar entrar no banheiro feminino, vivenciou uma cena de preconceito. Sequer teve tempo de explicar sua situação.
Placa em banheiro de café em Durham, na Carolina do Norte, dá as boas-vindas a homens e mulheres; sinalização foi instalada depois da aprovação da lei que obriga uso de banheiros públicos de acordo com sexo de nascimento e não identidade de gênero — Foto: REUTERS/Jonathan Drake
Pietro compara a dificuldade com a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência. Para ele, a instalação de uma cabine com sanitário privativo resolveria o problema, evitaria julgamentos e excluiria a necessidade de explicações.
“No meu trabalho eu tenho bastante sorte porque uso o masculino e ele é meio unissex, tem privada e mictório pra quem prefere e está sempre limpinho e a gente consegue fechar bem. Mas devo admitir que esses lugares são uma grande exceção à regra”.
A importância da ginecologia para homens e mulheres trans
O constrangimento e o preconceito não deveriam ser uma barreira. Menos ainda, na hora de cuidar da saúde. A médica ginecologista Luciana Pistelli afirma que a avaliação de pessoas transexuais é fundamental, pois é uma oportunidade de assistência global a essa população. A especialidade é capaz de oferecer orientações sobre saúde em geral, uso de métodos contraceptivos e prevenção de infecções, além de auxiliar na hormonioterapia e no combate ao câncer.
“Para pacientes que desejam iniciar ou estejam em processo de transição, o ginecologista pode prescrever hormonioterapia, para homens e mulheres trans, de modo adequado a cada paciente, de acordo com seu histórico de saúde, idade e objetivos. Outro importante tema é a discussão sobre métodos de preservação de fertilidade, antes da hormonioterapia e especialmente antes da realização de cirurgias de afirmação de gênero”, explica.
“Após o processo de transição os cuidados de saúde específicos para cada órgão se mantém. Por exemplo, sabe-se que dentre os homens trans, 80% utilizam hormônios, porém apenas 20% se submetem a cirurgias para afirmação de gênero e por tanto, mantêm órgãos como útero, ovários, vagina, vulva e mamas. Esses órgãos precisam de cuidados e screening [rastreios] específicos que não devem ser abandonados”.
As mulheres trans também devem se atentar aos cuidados com a saúde íntima. “Da mesma forma, mulheres trans devem seguir as recomendações de screnning para câncer de próstata, testículo e se acima de 50 anos, em hormonioterapia há mais de cinco anos, devem realizar screnning para câncer de mama, com palpação das mamas e mamografias. Mulheres trans submetidas a neovaginoplastia necessitam de cuidados específicos para esse novo órgão.”
Os profissionais de saúde devem fazer sua parte
A iniciativa de se cuidar, porém, não deve partir apenas do paciente. Cabe ao profissional de saúde se manter informado para orientar esse público. Afinal, um atendimento respeitoso, que compreende as necessidades de quem procura atendimento, é essencial para que a pessoa trans se sinta acolhida.
“A primeira coisa que qualquer profissional de saúde pode fazer é pesquisar e se informar a respeito de cuidados específicos de atenção à saúde da população trans, há diversos guidelines [orientações] disponíveis gratuitamente na internet. Deve também treinar seu staff [equipe] para o acolhimento e uso de linguagem neutra e inclusiva para atender aquele ser bio-psico-social da melhor maneira possível”.
“Pergunte como aquela pessoa prefere ser chamada e como se refere aos seus órgãos. É necessário deixar de lado nosso modo binário de pensar e nos lembrar que se trata de indivíduos, seres humanos que precisam de cuidados de saúde gerais e específicos. Deve-se deixar a curiosidade de lado e perguntar, observar, apenas o que é essencial para fornecer um cuidado de saúde excelente. O exame físico pode ser uma parte desafiadora para médico e paciente, estabeleça uma boa relação médico-paciente e mantenha uma atitude respeitosa”.
“Infelizmente ainda temos poucos especialistas no atendimento a essa população e é comum que deixem de procurar assistência por medo e constrangimento. Um estudo revelou que 80% dos ginecologistas que se formaram nos últimos 5 anos não receberam treinamento sobre cuidados específicos para pessoas trans. Felizmente esse tema sem tornado cada vez mais frequente em publicações e congressos médicos”.