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Hoje, vivi um dos capítulos mais importantes da história das ações afirmativas para pessoas trans/travestis no Brasil. Em sessão extraordinária — atravessada pela comoção e pelo repúdio categórico às ações genocidas do governo do Estado do Rio de Janeiro, especialmente os acontecimentos do último dia 28 de outubro —, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) finalmente aprovou a reserva de 2% das vagas para pessoas trans e travestis na graduação e na pós-graduação stricto sensu.
Eu acompanhei a sessão com a intensidade de quem há anos transforma a própria vida em pesquisa, política e testemunho. Não falo apenas como jornalista e pesquisadora, mas como autora do primeiro trabalho brasileiro sobre a história e estruturação das cotas trans — texto que há anos insiste, reivindica e documenta os caminhos dessa reparação.
Hoje, a UFRJ entrou oficialmente para a história.
📺 Assista à sessão completa:
https://www.youtube.com/live/j3gqwARsW98?si=90vC80YzWsT9D5rr
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A virada institucional
A aprovação das ações afirmativas trans na UFRJ não veio do nada. Vem de anos de mobilização estudantil, pressão política, coletivos organizados, intelectuais travestis, e das lutas silenciosas do cotidiano — aquelas que começam no ato de sobreviver.
A decisão aprovada prevê que 2% das vagas em todos os cursos regulares de graduação e pós-graduação stricto sensu sejam destinadas a pessoas trans/travestis.
Trata-se de uma mudança estrutural: a política passa de casos específicos e editais isolados para se tornar norma institucional universalizada.
Se a universidade é produtora de futuro, hoje ela moveu o ponteiro do tempo.
Entre a dor e o gesto
A sessão de hoje foi marcada também pela dor coletiva.
Dois dias antes, o estado do Rio amanheceu com outra marca sangrenta de sua história: uma megaoperação que deixou mais de 60 mortos nos subúrbios da capital.
Nos corredores da UFRJ — seus bastidores, sua arquitetura de memória — ecoava o luto.
A aprovação das cotas, nesse contexto, foi mais que uma política de inclusão: foi um gesto de insurgência diante da necropolítica.
A universidade respondeu ao sangue com dignidade.
O que muda
Com a aprovação:
• Pessoas trans/travestis terão direito assegurado de acesso à graduação e ao stricto sensu via ação afirmativa.
• A UFRJ deixa de tratar a pauta como exceção e reconhece seu caráter permanente e reparatório.
• A política se alinha à orientação técnica que acompanha a luta organizada, estabelecendo o percentual dentro do parâmetro sugerido por organizações especializadas.
Mas ainda precisamos acompanhar como será normatizada a autodeclaração, a operacionalização e a permanência dessas estudantes no cotidiano acadêmico.
Não basta abrir a porta — é preciso garantir que quem entra permaneça, crie, produza e se torne parte da inteligência viva da universidade.
Por que isso importa
Sei, por pesquisa e por vida, que pessoas trans/travestis são empurradas sistematicamente para fora da escola.
Menos de 0,02% da população trans alcança o ensino superior — número que, em pleno século XXI, denuncia uma ferida nacional.
Quando falo em cotas trans, não falo de privilégio: falo de acesso à humanidade.
Meu trabalho — que acompanha e narra a gênese das cotas trans no Brasil — sempre apontou para a UFRJ como peça chave desse processo.
Hoje, aquilo que eu escrevi como projeção histórica, ganhou carne.
Marcos futuros: trabalho a ser feito
Essa vitória não nos autoriza a descansar.
A partir de agora, precisamos:
• Cobrar normas claras de implementação;
• Garantir programas de permanência (bolsas, apoio psicológico, redes de pesquisa, combate à violência institucional);
• Monitorar impreterivelmente os dados de ingresso e conclusão;
• Ampliar a política para residências, extensão e concursos docentes.
A política nasce.
Mas ainda precisa crescer.
Atravessamentos pessoais
Como travesti biomédica, pedagoga, doutora em Educação, pesquisadora da memória trans e produtora de jornalismo científico, eu recebo essa notícia com o corpo.
Não há neutralidade quando se tem pele no jogo.
Não há distância quando aquilo que se escreve é sobre nossas irmãs, nossas filhas, nossos afetos — e sobre nós mesmas.
Coerência histórica
Meu trabalho sobre as cotas trans aponta um marco inaugural:
a construção, no Brasil, de uma política afirmativa que não depende de tradução cisgênera, mas se articula diretamente da produção de nossas próprias epistemologias.
Hoje, a UFRJ confirma que vidas trans são objeto e sujeito da história.
Hoje, o que era pesquisa se tornou política.
O que era teoria, virou campus.
O que era sonho, virou porta.
E, para que ninguém se esqueça: estas portas se abrem porque muitas de nós as empurraram com sangue, com corpo, com coragem.
O que eu levo desse dia
Levo o compromisso de seguir investigando, acompanhando e documentando este processo para que ele se fortaleça e se multiplique.
Levo também a certeza de que não vivemos uma concessão: vivemos uma conquista.
Seguimos.
Porque quando uma travesti entra na universidade, a universidade se transforma.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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