
Rose e Xuxeta so velhas conhecidas do pblico. A primeira, uma faxineira, est na lida desde 2010, quando estreou em vdeos no YouTube com pardias de Beyonc. O sucesso foi to grande que ela ganhou a ribalta, com a montagem “Rose – a empregada do Brasil” e, na sequncia, conquistou a telinha, estrelando programas no Multishow.
A segunda, uma travesti presidiria, foi criada para mexer com a dramaturgia de xilindro”, srie da mesma emissora de TV paga. O destino das duas personagens, mais do que nunca, est nas mos de seu intrprete, o ator mineiro Lindsay Paulino.
Instalado h quase dois meses em uma casa no Eldorado, bairro de Contagem, ele ensaia a pea de teatro que vai contar a histria de Xuxeta muito antes do Xilindr. Os fs podem esperar revelaes e novidades.
A principal delas que a personagem deixa de ser travesti, como na srie de televiso, e passa a ser um homem gay. “A fase do ‘Xilindr’, a que todo mundo conhece, problemtica por causa do transfake (quando um ator cisgnero, que se identifica com o seu gnero de nascena, interpreta personagens trans e travestis)”, afirma o ator.
A partir dessa questo, Lindsay iniciou um processo de criao cujo resultado vir a pblico no prximo dia 25, no palco do Galpo Cine Horto. A histria se desenrola dentro de um presdio na fictcia Seriguela, onde a personagem divide cela com Tom Tom (Paulo Vtor), uma espcie de capacho da Xuxeta; e Boquinha (Augusto Portes), que foi mandada para l por falta de vaga em presdios de So Paulo.
Ela (a personagem Xuxeta) tem um pouquinho de cada gay dos anos 1980, da minha gerao, esse gay que no podia ser quem . Mas ela enfrentou toda a sociedade e as pessoas para ser quem realmente ela er
Lindsay Paulino, ator
GERAO
Pouco se sabe sobre Xuxeta at a sua priso. “Ela tem um pouquinho de cada gay dos anos 1980, da minha gerao, esse gay que no podia ser quem . Mas ela enfrentou toda a sociedade e as pessoas para ser quem realmente ela era”, descreve Lindsay, lembrando que, em algum momento, Xuxeta se deu mal e foi presa.
Diretor da pea, Moacir Prudncio Jnior conta que, a partir dessa convivncia, as personagens se preparam para uma despedida trazendo, memrias de um imaginrio que muito prprio. “Elas sero atravessadas por memrias muito pessoais das feridas que fizeram parte da trajetria delas enquanto pessoas gays”, diz.
“Acho que isso muito tocante, porque essas feridas tm particularidades nelas, de dizer a respeito no s do corpo gay, mas tambm elementos compartilhados por qualquer pessoa LGBTQIA+, como o preconceito dentro do ambiente familiar. A pea traz tambm as memrias afetivas das avs, daquelas mulheres importantes e empticas que ns trs tivemos na nossa vida”, comenta o diretor.
Seriguela, aponta Lindsay, no existe, mas poderia ser qualquer municpio do interior do pas. “ uma cidade conservadora, moralista, que, na verdade, o que o Brasil no deixou de ser tambm. Acho que Seriguela representa o Brasil neste momento”. Otimista, o ator garante no perder as esperanas por dias melhores, mas pondera que isso depende de ns.
“No podemos pensar que existe um salvador da ptria. No, isso at nome de novela, n? Acho que a mudana est dentro de cada um, sabe? bvio que a gente precisa de um lder que tenha esses mesmos ideais que ns. Cada um tem mais a ver com a mudana do que esperar que venha algum fazer alguma coisa”.
No podemos pensar que existe um salvador da ptria. No, isso at nome de novela, n? Acho que a mudana est dentro de cada um, sabe? bvio que a gente precisa de um lder que tenha esses mesmos ideais que ns. Cada um tem mais a ver com a mudana do que esperar que venha algum fazer alguma coisa
Lindsay Paulino, ator
DESPEDIDA
A esta altura voc deve estar se perguntando como fica o futuro de Rose. Lindsay est preparando a despedida da personagem. “Vou mant-la at o ano que vem, quando o espetculo completa 10 anos em cartaz”, anuncia.
“ um espetculo fisicamente muito difcil de fazer. As pessoas falam: ‘Mas na Broadway as peas ficam 30, 40 anos em cartaz…’ E eu respondo: Mas o elenco vai mudando, as pessoas vo saindo e entram outras”, conta, bem-humorado. “No tenho mais o pique que eu tinha h 10 anos para fazer minha pea. um monlogo dificlimo de fazer.”
Lindsay afirma que, ao longo da dcada, ele amadureceu e o seu humor tambm. Os textos de Rose e o espetculo de Xuxeta refletem essa evoluo. “Acho que a gente no pode mais ser violento no nosso texto, nas nossas aes em cena e estou falando de racismo, de gordofobia, de homofobia, de transfobia, de capacitismo. uma coisa que eu j venho pensando h bastante tempo, mas principalmente para esse espetculo, que tem a reviso de texto de Renata Carvalho, atriz trans de So Paulo.”
Para Lindsay, no h a menor graa em fazer, por exemplo, uma piadinha gordofbica. “Se estou no teatro com 2 mil pessoas e uma pessoa se sente violentada com meu texto, eu no posso deixar que a piada sirva s 1.999 pessoas, entendeu? Eu tenho que pensar s nessa que est sendo violentada”, argumenta.
O ator diz que essa postura uma coisa natural para ele e no tem relao com a “preocupao de ficar ligados porque no pode fazer piada com isso ou aquilo”. “No! porque a gente tem a obrigao de ser assim. A partir de agora e porque a gente quer, um desejo nosso de mudana, de transformao da sociedade. E se a gente no d esse passo, a arte est a para isso tambm, n? Para mudar as pessoas e ns, como artistas, temos esse dever.”
Embora o sucesso de Rose seja inegvel, Lindsay no sabe dizer precisamente quantas pessoas viram a montagem em quase uma dcada em cartaz. Sabe que fez muitas temporadas longas, de trs meses em So Paulo e de dois meses, de quinta a domingo, em Belo Horizonte. A pea s no foi encenada no Nordeste pela dificuldade na logstica em levar o cenrio de caminho e pelos custos com passagem para a equipe de 10 pessoas.

Se estou no teatro com 2 mil pessoas e uma pessoa se sente violentada com meu texto, eu no posso deixar que a piada sirva s 1.999 pessoas, entendeu? Eu tenho que pensar s nessa que est sendo violentad
Lindsay Paulino, ator
NA RAA
“Tudo isso fica muito caro e eu nunca tive patrocnio para nada na minha vida. A Rose sempre foi na raa, confiando em que o pblico fosse ao teatro me ver”, afirma, com orgulho. “Isso foi bom, porque eu acabei conquistando um pblico que vai agora para o teatro me ver com esse novo espetculo.”
Mesmo trabalhando sem os benefcios de leis de incentivo, Lindsay reconhece a importncia do mecanismo, no s para garantir a sobrevivncia de grupos, como tambm para promover a formao de plateias. “Foi por causa da lei, inclusive, que eu sou ator hoje. Sou da poca da Telemig Celular, Circuito Telemig Celular de Cultura, quando o Grupo Galpo ia na minha cidade (Montes Claros) e eu assistia aquilo ali de graa na rua e falava: isso que eu quero fazer da vida. Ento, se no fosse a lei de incentivo, talvez eu no seria ator hoje.”
Xuxeta foi criao do roteirista e ator Caike Luna. “Ele escreveu, e eu dei vida a ela, a partir das minhas vivncias como gay, como homem cis gay, colocando o jeito de falar, a bateo de palmas, essas coisas eram coisas minhas, coisas dos meus amigos, observaes que eu fazia da minha bolha gay.”
A morte de Caike, vtima de cncer, h sete meses, interrompeu projetos que Lindsay e ele desenvolviam. “Xilindr” foi cancelado, assim como a turn de “Rose” com Baby, personagem de Caike. “Costumo dizer que era o meu segundo casamento, porque eu passava mais tempo com ele do que com meu prprio marido”, comenta.
“Os mesmos conflitos que eu tinha no meu casamento com Wesley eu tinha com Caike. Mas, ao mesmo tempo, a gente era muito parceiro e tnhamos um combinado de nunca estar brigado um com o outro, nunca ir para a cena brigado, se a gente tivesse uma coisinha que estivesse incomodando, a gente tinha que resolver na hora!”, conta.
“A gente tinha esse combinado de estar sempre muito bem em cena e na nossa relao para no deixar isso estragar o nosso convvio e para tudo ser bem sincero”, diz, lembrando que a falta do amigo bateu quando postou um vdeo de homenagem. “No incio as pessoas cobravam tanto um vdeo, um posicionamento meu, s que ele j tinha me pedido para no fazer isso. Respeitei at onde pude. Ele uma grande referncia pra mim dentro de humor. Eu era um superf do trabalho dele, um gnio.”
At a estreia de “Xuxeta - A bixa caa-treta”, Lindsay continuar morando no Centro de Belo Horizonte e se deslocando ao Eldorado, onde mantm os ensaios, de segunda a segunda, das 17h s 22h. O retorno a Belo Horizonte significativo para o ator, que considera sempre bom voltar s razes.
O espao da Companhia Solo Teatro Empresarial foi onde Lindsay trabalhou por 10 anos. “Quando eu me formei no Cefar (atual Cefart), em 2005, trabalhei numa companhia de teatro empresarial onde eu conheci Moacir. Viramos amigos. Ele comeou a dirigir os clipes da Rose na poca, os que a gente fazia na internet”, relembra.
“Eu nunca imaginei que Rose abriria tantas portas para mim e se transformasse no carro-chefe da minha carreira. Por isso achei que tinha que voltar para c, por esse smbolo mesmo de voltar para as razes e trabalhar com as mesmas pessoas.”
Lindsay est curioso sobre como ser a vida daqui para a frente, dividindo camarim com mais dois colegas, depois de uma dcada sozinho. “Vamos ver agora como que vai ser!”, diz. “Eu gosto de camarim com gente, sabe? Para ficar conversando, para ter essa troca, gosto do momento de estar me maquiando e conversando, eu sou muito de conversar e de fazer palhaada, eu sinto falta s vezes de ter algum.”
O ator define a produo do espetculo como uma celebrao de amizade de muitos anos. “Apesar de a gente ter pessoas muito competentes fazendo, cada uma na sua funo, somos muito amigos. Ento, trabalhar esse equilbrio do profissional e do pessoal acho que o grande desafio desse processo”, afirma.
Sobre a amizade com os demais membros da equipe, ele conta: “Eu j morei com o Jota e com o Paulo Victor. O Augusto de So Paulo, mas a gente muito amigo. Moacir e eu somos muito amigos. At quem est fazendo a luz, a Marina Artusa e o Rodrigo Nassau. O Diego Benicaqui, que produziu meu espetculo da Rose, est fazendo esse cenrio de agora. Ento assim, todo mundo de casa, sabe?”
O que isso quer dizer? “Ser de casa, ser famlia difcil, trabalhar em famlia difcil. Mas eu tenho muita certeza de que a gente vai fazer um trabalho maravilhoso porque s estou com gente muito competente.”