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Preconceito e invisibilidade social são barreiras para o acesso a serviços básicos, como de saúde, para a população trans
“Quando falamos de sexualidade em seu sentido mais amplo, isto é, sobre a forma como nos reconhecemos, nos autoconhecemos e interagimos com o outro, o que há é um apagamento da transexualidade. Para nós, as possibilidades de exercício da sexualidade são anuladas ou, no mínimo, são muito limitadas. Raramente somos procuradas para trocas autênticas. Dificilmente somos ouvidas e temos nossas necessidades e demandas atendidas – inclusive em espaços dedicados à saúde, que poucas vezes nos acolhem. Na verdade, nós, pessoas trans e travestis, somos normalmente vistas de forma fetichizada, como se fôssemos um objeto sexual, resumidas a um orifício ou ao falo. Por isso, gestos de afeto e carinho, principalmente à luz do dia, costumam nos ser negados”.
As observações, em tom de desabafo, são de Larissa Sanchez, mulher trans e primeira pessoa com menos de 18 anos a realizar a retificação de gênero em seus documentos pessoais na América Latina. Estudante de psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisadora em hormonioterapia, população transexual no Brasil e transexualidade em seu aspecto psicossocial, ela indica que ainda é longo o caminho pelo respeito a identidades que escapam à lógica cisgênero ou fogem à ideia de binaridade de gêneros.
“Eu diria que ainda precisamos começar pelo básico. E o básico é entender que as pessoas trans, travestis e não binárias são, antes de tudo, pessoas. E, como seres humanos, também desejam receber amor, e desejam ser reconhecidos pelo nome próprio e ser acolhidos em suas necessidades”, pontua. Ela aponta que o preconceito e a invisibilidade social se revelam uma barreira para o acesso a serviços de saúde, deixando essa população mais vulnerável.
Juliana Vieira Honorato, ginecologista com especialização em endocrinoginecologia e mestrado em saúde pela Santa Casa de São Paulo, concorda. Criadora do podcast Prazer em Conhecer-se, que aborda a sexualidade feminina por diversos ângulos, ela comenta não ser muito comum que mulheres trans que passaram pela cirurgia de redesignação de gênero façam consultas ginecológicas. “Essas pessoas costumam ficar meio perdidas, sem saber a que profissional devem recorrer, pois não possuem útero, mas possuem uma vagina, muitas das vezes recém-construída”, observa. A presença de homens trans nesses ambientes também é baixa. “Quando eles iniciam o processo hormonal tende a haver uma ruptura, uma vez que o ambiente dos consultórios de ginecologia é muito associado ao feminino, destoando da maneira como essas pessoas se identificam. Esse afastamento é grave porque há diversos exames de rastreio, como o de câncer de colo de útero, e outras orientações e aconselhamentos que deixam de ser feitos”, observa.
Barreiras
A médica aponta que, somada ao desconhecimento sobre a necessidade de se frequentarem espaços de promoção à saúde, a falta de acolhimento potencializa o problemático distanciamento entre a medicina, sobretudo a medicina preventiva, e as populações trans.
“Falando sobre as mulheres que passaram pela cirurgia de redesignação, é importante dizer que esse procedimento é eficiente no sentido de criar uma vagina pensada enquanto orifício que será receptor de uma penetração”, indica, detalhando que a operação pode utilizar o tecido do pênis ou parte da mucosa do intestino para criar o revestimento interno do novo canal vaginal. “Nos dois casos, embora haja diferenças para o órgão de uma pessoa cisgênero, os resultados em termos de complacência e elasticidade são bons. Contudo, em ambas as alternativas, a lubrificação é até 57% menor em comparação à de uma mulher cis. Então, há uma carência, e, por uma questão de preconceito e de haver pouco investimento em estudo para atender esse público, deixa-se de perguntar à paciente sobre esse tema, como se os profissionais nem imaginassem a possibilidade de existir um problema de lubrificação”, indica. “E o problema maior é que, se o assunto não for puxado pelo profissional da medicina, a paciente raramente vai se sentir à vontade para falar dessa dificuldade”, destaca, acrescentando que a falta de lubrificação pode gerar dor e até microlesões, que aumentam o risco de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). “Não é só uma questão de desconforto”, aponta.
“E, no caso dos homens trans com vagina, também há carência em se transmitirem informações básicas para o autocuidado. Repelidos dos consultórios ginecológicos, eles podem também sofrer com o ressecamento do órgão sexual quando passam pela hormonioterapia, que pode gerar a diminuição do estrogênio. Além disso, precisamos lembrar que há homens que menstruam, que podem engravidar. Se esses temas não forem abordados de forma satisfatória, teremos problemas”, avalia.
Mudança
Para Juliana, a atuação de órgãos governamentais, principalmente do Ministério da Saúde, é essencial para o rompimento dessa lógica social excludente. “Precisamos emergencialmente de mais ações em termos de políticas públicas e de campanhas de conscientização que sejam voltadas tanto para os profissionais quanto para pacientes”, declara. A especialista também defende ser fundamental e urgente a promoção de palestras e congressos na área da saúde, capacitando agentes de saúde para um atendimento voltado para a diversidade. Repensar a estrutura dos cursos de medicina, de enfermagem e de outros cursos com foco em atenção também é algo que ela avalia como crucial. “Nesse sentido, o interesse das marcas farmacêuticas de abordar a temática da transexualidade tem sido importante”, destaca.
“A partir da minha experiência pessoal, percebo que é muito importante tornar as estruturas das clínicas mais acolhedoras, mas essa não deve ser a única mudança a ser promovida. O atendimento também deve ser mais atencioso e cuidadoso. Hoje, não cabe mais perguntar a uma mulher como ela se depila, mas se ela se depila. Um profissional, ao atender uma pessoa do gênero feminino, cis ou trans, não deveria perguntar se ela tem namorado, partindo do pressuposto que ela seria heterossexual. Deveria, sim, questionar se essa paciente está em um relacionamento e deixar que ela diga qual sua orientação sexual. Na mesma linha, antes de questionar sobre o uso de contraceptivos, é importante saber se aquela pessoa tem ou não tem útero, se aquela é ou não uma demanda dela”, aconselha.
Mercado
A dificuldade de acesso a itens de autocuidado também é uma realidade para as pessoas trans e travestis. “Com nossos corpos hipersexualizados, como se estivéssemos disponíveis para proporcionar prazer ao outro, mas nunca para ter prazer, noto que há pouco esforço de desenvolvimento de itens pensados especificamente para nós”, observa Larissa Sanchez que, em consonância com as observações de Juliana Vieira, destaca que itens como lubrificantes íntimos são importantes para esse público.
Foi pensando nas necessidades específicas dessa população que a pesquisadora contribuiu, a partir da própria experiência e de estudos por ela desenvolvidos, para o desenvolvimento de uma fórmula que combinasse lubrificação e propriedades cicatrizantes em um mesmo produto. “Era uma demanda, principalmente para mulheres trans que passaram por cirurgia de redesignação, que precisam tratar esse novo canal criado”, pontua.
Para Marina Ratton, fundadora da Feel, uma das primeiras marcas nacionais a desenvolver itens para o bem-estar íntimo e sexual feminino, o crescente mercado de sexual wellness têm, ainda que minimamente, conseguido empregar mais diversidade a um universo que anteriormente ignorava as necessidades de pessoas trans.
“De uma maneira mais ampla, a sexualidade foi, historicamente, pensando do ponto de vista de estudos médicos e pautada no homem cis e hétero. Até mesmo a mulher cis, de certa maneira, é considerada uma extensão desse sujeito”, critica, lembrando que essa lógica se repetia no modelo de negócio dos sex shops, por exemplo. “Mas, agora, com esse movimento de se pensar o autocuidado como um todo, inclusive o bem-estar sexual, temos conseguido construir um debate mais amplo e atender um público mais diverso”, avalia.
No Brasil, a exemplo do que acontece em outros países, esse novo mercado vem sendo liderado por mulheres. Muitas vezes, como no caso da Feel, as operações são iniciadas na tentativa de oferecer um novo panorama para as milhares de mulheres cis que demonstram certa dificuldade em relação ao autoconhecimento e a autoexploração do próprio corpo, o que leva muitas a ter dificuldade de alcançar o orgasmo, além de dificultar o reconhecimento de possíveis problemas de saúde. Contudo, “à medida que a marca passa a interagir com o público, fica evidente que é possível avançar mais, orientando a marca para a diversidade”, diz, pontuando que há muitos itens que são convergentes, capazes de atender a necessidades mais generalistas, porém Marina reconhece ser fundamental mais investimento em produtos pensados para públicos específicos. “É um mercado que está longe de ser o ideal, mas mesmo assim há um avanço significativo”, avalia.