Sem atriz trans no elenco, 'Geni e o zepelim' captou recursos dizendo que filme seria sobre uma travesti

3 weeks ago 35
ARTICLE AD BOX

Ao anunciar que faria um filme adaptado da música "Geni e o zepelim", a diretora Anna Muylaert causou polêmica por escalar Thainá Duarte, uma atriz cisgênero (pessoa em que a identidade de gênero que se identifica corresponde ao sexo biológico que nasceu), para o papel da protagonista. Isso porque a canção de Chico Buarque faz parte da peça "Ópera do malandro", em que o papel é de uma travesti, o que fez com que artistas transexuais protestassem contra o apagamento desta identidade.

Ao se defender, a cineasta disse que a ideia do filme era fazer "uma prostituta cisgênero na Amazônia, uma influência até do que acontece ali no Marajó". E disse ainda que a música abre margem para diversas interpretações: "Durante o processo de criação desse filme, a gente entendeu que a letra pode ter várias leituras. Poderia, sim, ser uma mulher trans, uma mãe solteira, uma presidente tirada do poder sem crime de responsabilidade, que poderia ser uma floresta atacada diariamente por oportunistas".

Anna Muylaert não detalha quando ela e toda a equipe do filme optou por este recorte cinematográfico. Mas quando a diretora e a Migdal Filmes, a produtora, começaram a captar recursos, a sinopse dizia que o filme iria narrar "a história da travesti Geni". No documento entregue à Ancine, por exemplo, a história já dizia que seria uma prostituta "amada pelos desvalidos e odiada pela elite de uma cidade ribeirinha no coração da floresta amazônica", local que se mantém na versão atual da história.

"Baseado na canção homônima de Chico Buarque, 'Geni e o Zepelim' narra a história da travesti Geni, prostituta, amada pelos desvalidos e odiada pela elite de uma cidade ribeirinha no coração da floresta amazônica. Quando chegam os invasores de terra, interessados em desmatar a região para criação de boiadas, a cidade se divide apavorada: tratores, ameaças e motosserras invadem o local e logo começa a violência contra a população. É quando surge brilhante numa nuvem flutuante um enorme zepelim. E para surpresa de todos, o Comandante se apaixona por Geni, que recusa-se a dormir com ele. É quando a cidade em romaria vai beijar a sua mão. Com medo das ameaças, ela acaba aceitando o sacrifício, numa noite de prazeres e inversão de poderes que acaba sendo libertadora tanto para a cidade, quanto para a própria Geni", diz a sinopse.

 Reprodução/Ancine Sem atriz trans no elenco, 'Geni e o zepelim' captou recursos dizendo que filme seria sobre uma travesti — Foto: Reprodução/Ancine

A captação do longa começou em 24 de novembro de 2022 e eles tinham até 31 de dezembro de 2024 para captar recursos. O projeto também foi levado para o BrLab, evento anual destinado a futuros filmes em busca de financiamento. No texto, a sinopse é semelhante a apresentada para Ancine, reforçando que se tratava de uma travesti.

"A travesti Geni é uma prostituta amada pelos desvalidos e odiada pela elite de uma cidade ribeirinha do Amazonas. Quando chegam os invasores de terra, a cidade se divide apavorada: tratores, ameaças e motosserras invadem o local e logo começa a violência contra a população. Surge então brilhante, numa nuvem flutuante, um enorme Zepelim. E para surpresa de todos, o Comandante do veículo se apaixona por Geni. E oferece a ela tirar os invasores da cidade, se ela se deitar com ele."

 Reprodução/BrLab Sem atriz trans no elenco, 'Geni e o zepelim' captou recursos dizendo que filme seria sobre uma travesti — Foto: Reprodução/BrLab

A diretora usou as redes sociais para abrir um debate. Ela quer ouvir artistas trans e cis sobre possíveis interpretações para a música de Chico Buarque. A opção foi motivo de lamento, por exemplo, por parte da cantora Liniker:

"Eu acho que no Brasil que a gente vive hoje, o debate ser aberto como votação se é certo ter uma pessoa trans ou cis nesse papel ou não, já nos expõe grandemente. O Brasil não é um país acolhedor aos nossos corpos e trajetórias, principalmente se tratando de um protagonismo numa produção audiovisual. Todo respeito ao trabalho de Tainá Duarte, mas quando trazemos a reflexão em nossos textos desde que saiu essa matéria e nos posicionamos pelo apagamento, é por espaço e oportunidade que nos colocamos, por termos atrizes trans que poderiam sim dar vida a essa personagem tão icônica e já retratada tantas vezes como uma pessoa trans em montagens pelo Brasil", disse a artista.

 Reprodução/BrLab Sem atriz trans no elenco, 'Geni e o zepelim' captou recursos dizendo que filme seria sobre uma travesti — Foto: Reprodução/BrLab

A atriz Renata Carvalho provocou uma longa reflexão sobre o problema da falta de representatividade:

"Triste em saber que o novo filme 'Geni e o zepelim', de Anna Muylaert e da Migdal Filmes, escalaram uma atriz cisgênero (pessoa em que a identidade de gênero que se identifica corresponde ao sexo biológico que nasceu) para interpretar a personagem travesti Geni — uma das personagens trans mais emblemáticas do teatro e da música brasileira. Precisamos continuar atentos e vigilantes com a prática do transfake nas produções artísticas ainda em 2025. Mesmo que a equipe esteja cheia de artistas 'progressistas', a transfobia velada e estrutural está presente. O filme já vai nascer anacrônico, bem longe do seu tempo. Triste por ser a Anna Muylaert, uma diretora que tanto admiro e acompanho a carreira. E as verdadeiras Genis continuam sendo apedrejadas nas ruas, mortas, algumas viram objeto de desejo para artistas cisgêneros representar", disse a artista.

 Reprodução/Instagram Liniker e Renata Carvalho protestam contra escolha de cineasta Anna Muylaert por não escalar mulher trans para o filme "Geni" — Foto: Reprodução/Instagram

No texto, ela fez ainda uma crítica a artistas cisgêneros que aceitam assumir papéis que não deveriam fazer, já que as oportunidades ainda são escassas para pessoas trans no mercado audiovisual, principalmente.

"Quando os artistas cisgêneros entenderão e vão entrar nesse acordo nacional dando uma pausa na prática do transfake pelos próximos 30 anos? E que tal durante esse tempo incluímos artistas trans nos espaços de criação e atuação artística? Precisamos naturalizar nossas presenças e identidades e a arte pode sim colaborar para ampliar e alargar o entendimento sobre as vivências trans e travestis. Representatividade é estarmos de corpo presente nos espaços de poder, e a arte - principalmente o cinema - também é um espaço de poder (...). Nós ainda estamos brigando para sermos consideradas humanas. Nós estamos vendo a onda de ataques às pessoas e aos direitos trans e travestis pelo mundo. Nós queremos parar de sermos apedrejadas, e esse filme é mais uma pedrada que recebemos", disse.

A decepção não veio apenas da comunidade trans. Camila Pitanga, por exemplo, que é uma mulher cisgênero, decidiu entrar no debate proposto pela diretora.

"Você pode fazer o filme que quiser, com certeza. Mas pondero que esta interpretação serve sim ao apagamento doloroso de mulheres trans. São poucos personagens com esse protagonismo, entende? É uma escolha que fere. Eu amo como filha a Thainá e amo acompanhar o trabalho e voz. Bom debate. Obs: cuidado com o argumento de liberdade de expressão, de interpretação… tem um campo inimigo que usa a beça esse léxico", disse a atriz.

Leia o artigo inteiro
LEFT SIDEBAR AD

Hidden in mobile, Best for skyscrapers.