“Quando temos conhecimento, não deixamos passar por cima da gente”, garante universitária trans - ND Mais

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Foi a 2.906 km de distância da cidade onde nasceu que Drica D’arc Meirelles se encontrou como mulher, universitária e participante dos movimentos pelas pessoas transexuais. Aos 25 anos, saiu do interior do Amazonas para ter, em Florianópolis, suas principais conquistas, maiores alegrias e transformações.

Drica é referência para meninas transexuais por sua trajetória pessoal e participação no movimento LGBT de Florianópolis. – Foto: Mariana Passuello/NDDrica é referência para meninas transexuais por sua trajetória pessoal e participação no movimento LGBT de Florianópolis. – Foto: Mariana Passuello/ND

Com muito orgulho, Drica é uma mulher transexual e universitária, que  estuda Serviço Social na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Ela faz parte do grupo de 78 estudantes trans entre os mais de 30 mil alunos da instituição, segundo a Saad (Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades).

A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) estima que apenas 0,02% das pessoas transexuais se encontram no ensino superior, e Drica está elas.

Há sete anos na capital catarinense, a amazonense estuda e trabalha para contribuir com a mudança da realidade de pessoas transexuais. Foi assim que conquistou seu espaço como representante das mulheres trans e como mentora para meninas e meninos com histórias semelhantes a dela.

“Eu digo que a Drica nasceu, só que ela foi enclausurada num casulo chamado Adriano, onde ela viveu 27 anos da vida dela. Hoje a Drica desabrochou”, conta ela.

Para ela, o sentimento de ser mulher sempre existiu, desde criança. Entretanto, a jovem Drica não compreendia a própria identidade de gênero ou o que realmente a tornava uma mulher quando ainda se referiam a ela como um homem.

“Eu tinha aquela concepção de que eu tinha que ter o órgão genital. Uma vez eu cheguei a pegar a faca, e depois que eu pensei ‘não, eu vou morrer!’. Aquilo era muito forte na minha cabeça. Hoje eu sei que não é isso”.

Também não são as unhas pintadas, a maquiagem ou os acessórios que a tornam do gênero feminino. A universitária se vê, se sente e se porta como uma mulher, com coragem, assertividade e sinceridade.

“Vivo a mulher que eu sou! É a minha essência, eu sei. Eu me olho, posso estar nua, mas eu me vejo! E continuo sendo a mulher que eu sou, isso jamais vai mudar”.

Orgulhosa das suas vivências, Drica atua para garantir igualdade às pessoas transexuais. – Foto: Mariana Passuello/NDOrgulhosa das suas vivências, Drica atua para garantir igualdade às pessoas transexuais. – Foto: Mariana Passuello/ND

Conhecida pela comunidade LGBT de Florianópolis, ela atua como diretora financeira da ADEH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos) e organizadora do Festival Transforma, pioneiro entre os eventos voltado para filmes com perspectiva para a diversidade.

Também coordenou a Casa Transcender, uma das primeiras residências para pessoas transexuais em Santa Catarina. Infelizmente pela dificuldade de manutenção e o alto custo, a casa precisou ser fechada. Então, junto com outros membros da ADEH, desenvolveu uma iniciativa para prestar assistência às pessoas trans em situação de rua da Capital, no Complexo Nego Quirido.

Suas atuações e participações nos movimentos sociais têm origem nas suas vivências como mulher transexual, nascida e criada em Parintins, a segunda maior cidade do Amazonas, mas que encontrou um ambiente de acolhimento em Florianópolis.

Floripa: um local de reencontros e conquistas

A chegada à Ilha de Santa Catarina foi motivada por um sonho com a avó, que dizia “vai-te embora!”. Maria do Carmo Meirelles Pinto havia morrido há um ano quando, na imaginação de Drica, orientou a neta a buscar o rumo de Florianópolis, onde desembarcou em 2015.

Na Capital, trabalhou como auxiliar de serviços gerais, caixa de restaurante e até em bar de balada para o público LGBT. Conheceu pessoas e novas possibilidades de caminhos para o futuro.

As amizades deram suporte para que a jovem reconhecesse sua identidade como mulher, e apoiaram a transição que iniciou em 18 de maio de 2018. A data, que ela lembra de cor, marca o dia da primeira dose de hormônio feminino.

Foram sete meses de tratamento hormonal até Drica desenvolver o corpo que possui hoje. Desde então, a universitária não toma mais hormônios ou remédios com esse objetivo.

Drica em uma noite na praia da Joaquina, no leste de Florianópolis. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/NDDrica em uma noite na praia da Joaquina, no leste de Florianópolis. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/ND

“Eu acredito que tudo está na cabeça. Eu me vejo, eu exalo a mulher que existe dentro de mim. Não me acho mais mulher ou menos mulher se tenho peito ou não”.

A trajetória em Florianópolis se tornou ainda mais importante após um presente de aniversário: a inscrição para o vestibular da UFSC em 2019. Determinada a entrar na universidade, Drica estudou para as provas e conquistou a vaga para graduação em Serviço Social.

“Floripa me abriu o leque de oportunidades, é onde eu quero aproveitar isso tudo. Enquanto o leque tá me abanando!”, brincou.

Educação como motivação

A oportunidade de estudar e o status de universitária são parte da maior conquista de Drica, junto do seu começo na carreira acadêmica.

“Antigamente eu queria ser reconhecida por um Big Brother, eu tinha essa ideia quando era mais nova. Agora, eu quero ser reconhecida por um trabalho científico, por fazer um projeto, algo que beneficie a minha comunidade”.

Mesmo ao ser expulsa de casa pela mãe aos 15 anos, quando se apaixonou por um garoto pela primeira vez, Drica sempre buscou aprender mais. Trabalhava como faxineira para se sustentar, contava com a ajuda de amigos próximos, mas tinha muita clareza sobre o papel que a educação poderia ter na sua vida.

Além de ser uma das diretoras da ADEH, Drica também é bolsista da UFSC. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/NDAlém de ser uma das diretoras da ADEH, Drica também é bolsista da UFSC. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/ND

“Coloquei na minha cabeça que a única forma que eu ia mudar o meu futuro era estudando. A gente só vai quebrar o preconceito através da educação”.

Hoje estudar é a ocupação em tempo integral de Drica, bolsista da universidade. A dedicação aos livros é prioridade, tratada como chance de agregar conhecimento e ainda motivar outras jovens trans.

Segundo ela, muitas meninas não acreditam que podem ter uma oportunidade para se profissionalizar e ocupar espaços que as mulheres trans ainda são pouco vistas, como o meio acadêmico, dos negócios e da política.

As transexuais sofrem com o estigma social perpetuado até hoje, relata Drica. Essa desaprovação coletiva baseada em preconceitos levou à marginalização do grupo, que possui menos oportunidades de trabalho e tem alto índice de abandono escolar.

Cerca de 82% das mulheres transexuais e travestis desistiram do ensino médio entre os 14 e 18 anos, segundo a RedeTrans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil).

“Em determinados ambientes, as pessoas pensam que a gente nasceu e vive para rua, para noite, para as esquinas. Eu adoro quando chego e digo que sou universitária da Federal”.

Uma rede de apoio manezinha

Nesse contexto que desfavorece principalmente as pessoas transexuais, a estrutura da ADEH e a articulação das diretoras para dar suporte a esse público se mostra essencial em Florianópolis e se torna referência para o Estado.

Uma das ações realizadas pela ADEH antes da pandemia era o Café da ADEH, na antiga sede da associação. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/NDUma das ações realizadas pela ADEH antes da pandemia era o Café da ADEH, na antiga sede da associação. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/ND

A associação somou cerca de 50 atendimentos por mês em 2021 para pessoas transexuais, gays, lésbicas, bissexuais e do espectro queer, além de promover inúmeras campanhas e ações de apoio.

O objetivo é garantir que todas as pessoas possam ter acesso aos seus direitos e ocupar os espaços que desejam, mesmo em situações de vulnerabilidade social, sem deixar a identidade de gênero e a orientação sexual de lado.

Drica na antiga sede da ADEH, em Florianópolis, onde realizavam atendimentos, orientações e reuniões. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/NDDrica na antiga sede da ADEH, em Florianópolis, onde realizavam atendimentos, orientações e reuniões. – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/ND

Drica reconhece que ser parte da ADEH é uma forma de contribuir para uma mudança significativa na sociedade. Dessa forma, pode ajudar outras pessoas com vivências parecidas com as dela, assim como ela recebeu apoio quando mais precisou.

Cair e levantar

A história de Drica teve muita dor, com violência física e sexual na primeira metade da vida. Quando disse para a família que não era um homem, e sim uma mulher, enfrentou resistência para aceitarem sua identidade antes mesmo de adotar o nome social.

“Hoje minha mãe não me aceita, a gente não se fala. Cada conversa é uma briga. Eu passo na rua tranquilamente, ninguém me xinga, ninguém me fala nada. Mas a minha mãe faz questão de fazer isso”.

Depois de adulta, ela conta que chegou a sofrer exploração do trabalho em troca de moradia, mas não recebia remuneração. Realizava trabalhos braçais pois eram os únicos oferecidos a ela, até que teve a oportunidade de fazer a sonhada graduação, e agarrou a chance com força.

Indo contra o que a própria mãe esperava dela, Drica sempre se recompôs após os desafios para sobreviver e resistir sem perder a visão de quem é e para onde queria ir.

“Agradeço muito a ela porque se não, eu não estaria aqui. Não teria lutado tanto. Caí e levantei porque eu aprendi que se eu não levantar, eu vou ficar lá e nada vai acontecer”.

Apesar de todas as violências, Drica diz que não tem raiva de ninguém, nem mesmo de quem a feriu e a rejeitou. “Hoje não me dói, não tenho rancor. Acredito que essa vivência lá atrás retrata muito a minha força hoje”.

Um futuro para todas

Com metade da graduação pela frente, Drica ainda quer aprender muito para aprimorar o trabalho feito com as pessoas LGBT. Seu objetivo é seguir a carreira acadêmica, mas com foco no assistencialismo para lésbicas, gays, bissexuais e transexuais.

Em Florianópolis, Drica quer continuar o trabalho com o público LGBT. – Foto: Mariana Passuello/NDEm Florianópolis, Drica quer continuar o trabalho com o público LGBT. – Foto: Mariana Passuello/ND

“Não tenho medo, eu vou falar o que eu souber, fazer o que eu souber. Quando temos conhecimento, não deixamos passar por cima da gente”, ela reforça.

Para conquistar novos espaços, ela acredita que a união das mulheres transexuais com o grupo LGBT será fundamental. A estudante relata que ainda existe preconceito dentro da própria comunidade, mesmo que em momentos pontuais, mas que precisam ser debatidos para serem erradicados.

Drica argumenta que o grupo precisa se proteger, ter empatia entre os membros LGBT. Se não, eles ficam ainda mais vulneráveis à ações preconceituosas perante o resto da sociedade.

Além disso, a universitária diz que a transfobia velada, ou seja, o preconceito mascarado contra pessoas transexuais, está presente no dia a dia e proporciona a marginalização do grupo. Para ela, esse é o alvo que deve ser combatido para garantir a cidadania de todos.

“Esse preconceito existe, a transfobia é nua e crua. As pessoas não te querem ao redor, na sua casa, então é um preconceito velado. Não queremos ser melhor que ninguém, só queremos nosso direito de ir e vir, como qualquer cidadão. Queremos ser parte de um todo”, conclui Drica.

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