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"As pessoas têm medo de se aproximar das pessoas trans/travestis. (Vivemos) sob uma tolerância muito frágil. Somos vistas como ameaça", diz Bruna Benevides, mulher trans que, pelo quinto ano, produziu um dossiê sobre a violência contra essa população no país.
A edição mais recente será entregue nesta sexta-feira (28) à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), em Brasília. O dia seguinte, 29 de janeiro, é Dia Nacional da Visibilidade Trans.
O dossiê aponta que, em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no país, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 5 homens trans e pessoas transmasculinas.
Como não há um dado oficial sobre o tema, a pesquisa é feita a partir de informações encontradas em órgãos públicos, organizações não-governamentais, reportagens e relatos de pessoas próximas das vítimas (leia mais ao fim da reportagem).
Pelo 13º ano, o Brasil continuou sendo o país onde mais se mata essa população, seguido pelo México e os Estados Unidos, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU, na sigla em inglês), que reportou 375 assassinatos em todo o mundo no ano passado.
A vítima mais nova: 13 anos
O relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), da qual Bruna Benevides faz parte, mostra ainda que as vítimas morrem cada vez mais cedo.
Keron Ravach é a vítima mais jovem nos relatórios da Antra, que contabiliza as mortes de transexuais no Brasil desde 2017 — Foto: Arquivo pessoal
Keron Ravach, de 13 anos, assassinada a pauladas no Ceará, ainda no começo de 2021, se tornou a vítima mais jovem conhecida nesses 5 anos de pesquisas da Antra.
Foi também a mais jovem registrada em todo o mundo em 2021, pela TGEU. Uma idade bem abaixo da já curta expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil, que é de 35 anos.
Só foi possível saber a idade de 100 das 140 assassinadas no ano passado; 53% delas tinham entre 18 e 29 anos.
Muitos crimes relatados contra pessoas trans têm requintes de crueldade: houve ao menos 4 casos em que foi ateado fogo à vítima ainda viva, como aconteceu com Roberta Nascimento da Silva, em junho, em Pernambuco.
Das 120 ocorrências onde havia informação sobre como a morte ocorreu, 47% foram por armas de fogo; 24% por arma branca; 24% por espancamento, apedrejamento, asfixia e/ou estrangulamento; e 5% de outros meios, como pauladas, degolamento e queimaduras.
Em 14 ocorrências, houve a associação de mais de um método, como assassinato e sequestro/rapto e/ou desaparecimento da vítima. E ao menos 5 casos em que a vítima havia sobrevivido a uma tentativa de assassinato anterior.
O raio-X das vítimas não mudou nos últimos anos. Em 2021, 81% eram travestis/mulheres trans negras. Uma era indígena.
E 78% dos crimes foram contra travestis e mulheres trans profissionais do sexo, a maioria atuando nas ruas. Não à toa, 77,5% dos assassinatos aconteceram em espaços públicos.
Daí a avaliação de Bruna Benevides de que os casos de pessoas trans que conseguem "furar a bolha" e ter reconhecimento público não resolvem o problema como um todo.
Ainda segundo a associação, 6% estão em atividades informais e subempregos. E 90% da população de travestis e mulheres transexuais utiliza a prostituição como fonte primária de renda.
A resposta está no ciclo que envolve muitas dessas pessoas, passando pela expulsão de casa e da escola, que levam à necessidade de se sustentar a despeito do preconceito e da baixa escolaridade.
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Também foram identificados 5 assassinatos de defensores de direitos humanos, sendo 4 travestis e mulheres trans e 1 pessoa transmasculina, todas pessoas negras.
São Paulo se manteve como o estado como o maior número de mortes, sendo 25 em 2021, seguido pela Bahia (13) e o Rio de Janeiro (12).
Para a pesquisadora, não falta visibilidade para a população trans, mas é preciso mudar o que é evidenciado: uma imagem de abjeção e medo.
Bruna Benevides, autora de dossiê sobre a violência contra a população trans no Brasil, diz que é preciso mudar o estigma que este grupo carrega — Foto: Reprodução/Instagram
"Precisamos de uma visibilidade que saia desse paradigma da dor, da violência. E não é só pegar casos excepcionais, de pessoas que se deram bem na vida. É um processo que envolve um esforço de toda a sociedade", explica Bruna Benevides.
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A pesquisa realizada pela Antra é feita a partir de relatos obtidos junto a órgãos de segurança pública, organizações ligadas aos direitos humanos e à população LGBTQIA+, reportagens e redes sociais: não há dados oficiais sobre a população trans no país.
Isso, segundo Bruna, pode significar um número ainda maior de vítimas que o contabilizado em 2021 e nos anos anteriores. Em 2020, foram 175, um recorde. "Por isso não é possível dizer que, na realidade, a violência está diminuindo", pontua.
O Atlas da Violência 2021 trouxe dados relativos à quantidade de pessoas LGBTQIA+ que passaram pelo sistema de saúde em 2019, sem especificar, por insuficiência de informações, a motivação das violências sofridas por elas.
O levantamento é feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), ligado ao governo do Espírito Santo.
A base do Atlas são os registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação. "É assustador pensar que 98,8% dos registros (do Sinan) não possuem a informação sobre a identidade de gênero das pessoas", aponta o dossiê da Antra.