O padrão ouro da maternidade - UOL

3 years ago 944
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Imagine uma pessoa grávida. Algo me diz que você imaginou uma mulher branca, cisgênero, heterossexual, bem vestida, casada, com as mãos sobre o ventre e olhar enternecido. Talvez tenha imaginado o oposto de tudo isso, mas não é o que costumo escutar dos alunos quando lhes proponho admitir —pelo menos para si próprios— a primeira coisa que lhes vêm à cabeça.

O padrão ouro da maternidade, ou seja, os sujeitos considerados aptos a se ocuparem da prole, tem correspondido a essa imagem que vem espontaneamente à cabeça de muitos. Qualquer desvio dessa miragem meticulosamente construída ao longo dos últimos séculos revela perda gradativa de valor. Assim, teremos que a mãe que não gestou, negra, transexual, lésbica, pobre, solteira, por se afastar do molde, distorce o espelho narcísico no qual a sociedade quer ver-se refletida.

A reprodução humana é basicamente a reprodução do tecido social e a fantasia recorrente é de que se só a elite procriasse a pobreza acabaria, revelando uma forma alucinada de entender as causas e os agentes perpetuadores das desigualdades sociais.

Um dos efeitos desse descalabro é a forma como mães e cuidadores que se distanciam da imagem são tratados todos os dias. Nas escolas, nos hospitais, nos tribunais, nos consultórios, nas famílias é perceptível a crença de que se tratariam de mães e pais de segunda qualidade, inaptos, negligentes ou francamente perniciosos.

A pesquisa "A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil" (2016), coordenada por Maria do Carmo Leal, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca do Rio de Janeiro, escancara a diferença de tratamento que recebem as mulheres de pele escura desde a gestação passando pelo parto. Trata-se da crença arraigada e inconsciente de que a mulher negra aguenta mais dor e está mais talhada a enfrentar o parto sem analgesia e sem assistência. Marca do racismo estrutural que atravessa o olhar de cada cidadão no trato com os corpos negros e que precisa ser denunciado para que haja sensibilização e mudança.

Também é conhecida a forma sistemática como o Estado se apropria dos filhos de mães em situação de vulnerabilidade social, ao invés de promover as condições sociais para a maternidade. Tivemos o desprazer de ouvir as críticas de Janaina Paschoal à PL 3717/2021, que institui a lei dos direitos da mãe solo, prevendo prioridade a essas mulheres nas áreas de mercado de trabalho, assistência social, educação infantil, habitação e mobilidade, em nível federal. O argumento da deputada federal por São Paulo é de que "esse tipo de projeto pode servir como incentivo a não se formarem famílias, a não se oficializarem as uniões, a gestações precoces e até forçadas". O discurso maternalista, presente desde a virada do século 20, preconiza que o Estado deve "ajudar" as mulheres a cuidarem dos filhos. Ideia que parece louvável, mas que subentende que a responsabilidade com as próximas gerações é das mães e elas só precisam de uma forcinha. De preferência as casadas, claro.

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A luta de pessoas solteiras, transexuais e/ou homossexuais para adoção também é uma batalha que depende de escancararmos a fantasia do padrão ouro de cuidado e passarmos a julgar as qualidades reais dos sujeitos que pleiteiam essa função.

Para desmontar esse bonecão de Olinda que se tornou o ideal de maternidade, precisamos reconhecer seu caráter misógino, racista, elitista e calcado na biologia. A depender dele, quase não existiriam cuidadores aptos a lidar com as crianças, fato que milhões de famílias e instituições desmentem.

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