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Imaginar uma vida inteira pela frente, com planos e metas, deveria fazer parte da realidade de todos em sociedade. Contudo, para transexuais e travestis, a passagem do tempo até o envelhecer se torna, diariamente, sinônimo de luta e resistência, já que a expectativa média dessa população é de apenas 35 anos, ou seja, menos da metade da média da população no país, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra).
Entre os principais motivos para a falta de expectativa de futuro para a juventude trans, está a violência, seja física ou mental. De acordo com a ativista da causa LGBTQIA+ no Espírito Santo e coordenadora de Ações e Projetos da Associação Gold, que atua desde 2005 na defesa dos direitos humanos, Déborah Sabará, 42 anos, “o maior desafio é passar pelas situações diárias”, que vão desde cumprimentar uma pessoa e receber um olhar diferente como resposta, a entrar em um ônibus e ninguém sentar ao seu lado.
Esse estigma, continua Déborah, parte do ensinamento de que corpos trans são sinônimo de perigo, o que, consequentemente, gera em toda essa parcela populacional deficiências sociais, que vão desde relações familiares à atos simples, como o de trabalhar e estudar.
“A população T ainda não conseguiu a relação familiar, a sociabilidade, estar de mão dada… É tão natural vermos homens gays trabalhando em portas de lojas, em salões de beleza, mas não vemos a população trans. Estamos ainda sem escolaridade, analfabetas, sem conseguir cursar um Ensino Médio e dificuldades de chegar ao Ensino Superior. Além disso, as trans que rompem isso sofrem tudo”, ressalta.
Resistência e enfrentamento
Bandeira trans nas cores do orgulho transgênero — (Foto: Divulgação)
Uma das fundadoras do movimento trans no Brasil e presidente do Fórum Nacional de Travestis e Transsexuais Negras e Negros (Fonatrans), Jovanna Baby, 59 anos, que se divide atualmente entre São Mateus, no Norte do Espírito Santo, e o Estado do Piauí, conta que parte da sua própria história, está ligada, de forma direta, as discussões sobre a organização social travesti em Vitória, que vincula-se a resistência e ao enfrentamento da violência.
Enquanto trabalhava na prostituição na região do Parque Moscoso, no Centro da capital capixaba, Jovanna se “empoderou para lutar por um futuro sem transfobia”. Dali em diante, conta a presidente da Fonatrans, os anos, além de acumularem idade e experiência, fizeram com que ela chegasse aos 59 anos sem acreditar que havia conseguido ultrapassar os 35 anos.
“Eu não consigo entender porque é glorioso isso para mim. Não sei explicar eu passar da estatística e talvez algumas coisas facilitaram. Eu não sou muito de ir em festas. Acredito que isso evitou com que eu fosse ao encontro de momentos da vida que são mais perigosos, por exemplo. Eu trabalhava mais de dia como prostituta […] Mas a grande maioria que conseguiu [passar dos 35 anos] não foram ou são profissionais do sexo, já que elas estão mais expostas a transfobia”, frisou.
No entanto, mesmo para aquelas ou aqueles, como Jovanna e Déborah, que conseguem adquirir bens, estudo, argumentos com o passar do tempo, o medo e o receio nem sempre dão lugar a simples hábitos e vontades pessoais. Para a ativista LGBTQIA+ capixaba, mesmo passando dos 35 anos, o medo de andar sozinha, por exemplo, ainda é grande, já que, segundo ela, “as pessoas foram ensinadas a odiar a gente [população trans]”.
Estatísticas e problemas
ES é o 13º Estado no ranking de assassinatos de trans no país — (Foto: Pixabay)
Durante o ano de 2021, de acordo com o Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras, o Espírito Santo registrou três casos de assassinatos de transexuais, sendo o 13º no ranking. Dentro da série de quatro anos, o maior registro de casos no Estado foi em em 2017, com sete assassinatos.
Entretanto, ainda é preciso levar em consideração que existe um alto índice de subnotificação ainda presente na comunidade trans.
Dentro desse conjunto de informações e problemáticas, Jovanna destaca que mais de 80% das mulheres trans, por exemplo, estão na prostituição, sendo mais de 70% delas negras e expostas a violência cotidiana. Nesse sentido, para ela, não dá para comemorar essa “longevidade”, já que ainda falta o mínimo: respeito independente de gênero, identidade, cor de pele e/ou posição social.
“Eu não acredito em qualidade de vida para nós mulheres trans e travestis se não houver, de fato, mudança no comportamento social do Brasil e nas leis que garantam nosso acesso. Garantir uma aposentadoria de um salário mínimo para uma transexual já seria glorioso, mas não teríamos uma velhice decente. Para isso, precisamos ser amparadas na adolescência, juventude, fase adulta para viver a velhice em comum com toda sociedade”, disse Jovanna, que daqui a três anos deve se aposentar, aos 62 anos.
Saídas e políticas públicas
Casa de acolhimento para LGBTIs — (Foto: Wagner Orígenes/SECOM)
Logo, Déborah defende a construção de projetos sociais para essa população, que ao chegar em idades mais avançadas não consegue fazer uso de uma aposentadoria, por conta da falta de escolaridade e trabalho. Entre as possíveis saídas, estaria a criação de uma Casa de Acolhimento a crianças, jovens, adultos e idosos LGBTQIA+.
“É política de governo junto com a Justiça […] Com uma Casa de Referência LGBT nós temos um lugar que entende o que essa pessoa passa, que aceita ela, seu nome social, que trabalha a questão da autoestima, saúde. Isso poderia ser feito no envelhecimento de pessoas trans com essas políticas públicas”, explicou.
“Há uma cobrança do padrão hétero, normativo e cis. Isso é doloroso”.
Déborah Sabará, ativista da causa LGBTQIA+ no Espírito SantoDessa forma, tais ações permitiriam que essas pessoas tenham nessa fase da vida condições de viver com dignidade e acolhimento, já que, como destacou Déborah, com o passar o tempo, transexuais e travestis acabam se destransicionando, ou seja, acabam voltando para o gênero que coincide com o sexo designado ao nascimento, por fatores discriminatórios, como não conseguir manter uma aparência hétero-cis-normativa cobrada pela sociedade.
Foto em destaque: Reprodução/Canal Tech – Arquivo Pessoal