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*Por Brunna Condini
No Mês do Orgulho LGBTQIA+, a modelo, empresária e atriz transgênero Thalita Zampirolli, celebra suas conquistas em um mundo, infelizmente, ainda povoado de preconceito e violência em relação a essa população. Aos 36 anos, ela que fez sua transição aos 18, acaba de ser anunciada como rainha de bateria da Unidos da Ponte, escola de São João de Meriti que desfila no Grupo de Acesso. O anúncio vem depois da polêmica que envolveu seu nome e a suposta compra do posto de ‘rainha’ em outra agremiação, a Acadêmicos de Niterói. “Foi um momento muito delicado, porque surgiram informações distorcidas sobre mim e a minha relação com o carnaval. Isso é algo que fere não só a minha imagem, mas também a história e o trabalho sério que sempre tive com as escolas de samba. Estou muito feliz em fazer parte dessa família azul e branca e pronta para honrar esse posto com muito samba no pé, dedicação e amor ao carnaval”, diz.
Thalita parece gostar dos holofotes e mais ainda da representatividade que eles atraem. Lutando contra o preconceito e a discriminação, ela ressalta o direito da comunidade trans de ser tratada com respeito e ocupar todos os espaços. “As conquistas vitais para nossa comunidade vão muito além da representatividade. A gente ainda luta pelo básico: acesso à educação, mercado de trabalho, saúde, segurança e reconhecimento legal da identidade de gênero. Viver com liberdade e sem medo ainda é um privilégio para poucos. É por isso que sigo em frente, por mim, pela Thalita que fui, e por todas as meninas e meninos trans que sonham em ocupar espaços com orgulho e sem pedir desculpas por existir”. A seguir, Thalita compartilha sua história, fala da vida em Boston, onde vive há 10 anos, dos sonhos, do preconceito ainda hoje, e da importância de ajudar a abrir caminhos para quem está vindo:
No Mês do Orgulho LGBTQIA+, Thalita Zampirolli celebra suas conquistas, contra o preconceito e a discriminação (Foto: Alexon Lamin)
Me sinto uma das vozes que ajudam a abrir caminhos. Não me coloco como única ou pioneira, porque muitas vieram antes de mim, e muitas, infelizmente, nem chegaram a ter voz. Mas sei que, com a visibilidade que tenho, posso contribuir para quebrar barreiras, desconstruir preconceitos e mostrar que pessoas trans merecem respeito, dignidade e oportunidades como quaisquer outras – Thalita Zampirolli
Natural de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, desde muito jovem Thalita soube que sua história seria marcada pela coragem de ser quem realmente era, ou seja, de ter coragem de batalhar por sua identidade. “Passei por um processo de transição ainda muito nova, em um tempo em que pouco se falava sobre isso, especialmente em cidades menores. Foi uma fase de muito preconceito, mas também de descobertas importantes. Me mudei para o Rio de Janeiro para fazer a faculdade de Desenho Industrial, e aos poucos fui conquistando meu espaço como modelo, atriz e empresária. Hoje, com uma base sólida nas redes sociais (ela tem quase três milhões de seguidores no Instagram) e, no meio artístico, uso minha visibilidade para representar, inspirar e abrir portas para outras pessoas trans e para quem precisa de coragem para viver sua verdade. Voltar ao carnaval do Rio, por exemplo, é mais do que um retorno à Sapucaí. É a celebração da minha trajetória e da mulher que me tornei. A Thalita de hoje é fruto de muita luta, resistência e de muito amor próprio”, avalia.
A modelo, empresária e atriz Thalita Zampirolli, é eleita rainha de bateria da Unidos da Ponte (Foto: Alexon Lamin)
Thalita mora em Boston, nos Estados Unidos, lá é empresária, dona de dois salões de beleza e de uma academia de ginástica, e revela que a mudança de país se deu, principalmente, por questões de sobrevivência:
A escolha de viver fora do Brasil foi, antes de tudo, por segurança e oportunidade. Há 10 anos, ser uma mulher trans no Brasil era, e infelizmente ainda é, extremamente desafiador. Buscava um lugar onde pudesse viver com mais liberdade, investir nos meus sonhos e construir uma vida com estabilidade e respeito – Thalita Zampirolli
E continua. “Em Boston, encontrei a chance de empreender, estudar, crescer como pessoa e como profissional. Foi uma decisão difícil, porque amo meu país, minha cultura e tenho raízes fortes aqui. Mas fora, pude construir uma base sólida, e isso me dá hoje a possibilidade de transitar entre os dois mundos, levando tudo que aprendi e conquistando meu espaço sem abrir mão de quem sou. Agora, com o retorno ao carnaval do Rio, estou unindo minhas duas realidades: a Thalita empresária internacional e a Thalita que ama o samba, a cultura brasileira e que nunca deixou suas origens para trás”.
“A escolha de viver fora do Brasil foi, antes de tudo, por segurança e oportunidade. Há 10 anos, ser uma mulher trans no Brasil era, e infelizmente ainda é, bem desafiador” (Foto: Alexon Lamin)
Sonhos
“Meu maior sonho como mulher trans hoje é viver em um mundo onde nossa existência não seja questionada, onde possamos ocupar qualquer espaço com respeito, segurança e dignidade, seja na arte, na política, nos negócios ou na vida cotidiana. Quero ver meninas trans crescendo com autoestima, com apoio das famílias, e acreditando que podem ser tudo o que quiserem. Infelizmente, vejo que isso vai demorar. Ainda enfrentamos um sistema que nos marginaliza, que nega oportunidades e que muitas vezes nos vê apenas por estigmas. A violência, o preconceito silencioso, a exclusão no mercado de trabalho e até na saúde básica ainda são realidades duras”, lamenta. E revela:
Ser mãe sempre foi um sonho íntimo e especial para mim. Não é sobre biologia, é sobre amor, cuidado, entrega. Me imagino com uma criança nos braços, educando com afeto, formando um ser humano livre de preconceitos, com valores e empatia. Como mulher trans, sei que a maternidade ainda é um tema cercado de tabus e julgamentos. Mas acredito que o amor que a gente tem para oferecer é o que realmente importa. Seja por meio da adoção ou de outras possibilidades, eu não descarto esse desejo — ele mora em mim com muita força e carinho –Thalita Zampirolli
“Me imagino com uma criança nos braços, educando com afeto, formando um ser humano livre de preconceitos, com valores e empatia” (Foto: Alexon Lamin)
No mood do orgulho
Como forma de reconhecimento da própria identidade, orientação e resistência contra o preconceito e a transfobia, Thalita reflete. “Tenho muito orgulho de não ter desistido de mim. De ter enfrentado o preconceito, as dores, os julgamentos, e mesmo assim seguir em frente, de cabeça erguida, acreditando na minha verdade. Tudo o que conquistei foi com esforço, coragem e, principalmente, com amor próprio”.
Tenho orgulho de ter me tornado referência para outras pessoas trans, de ter construído minha independência, minha carreira e de estar viva, porque, infelizmente, isso ainda é um ato de resistência para muitas de nós – Thalita Zampirolli
Se pudesse fazer algo diferente na sua trajetória, o que seria? “Teria sido menos dura comigo em certos momentos. A gente se cobra demais, tenta se provar o tempo todo. Hoje entendo que não precisava me encaixar ou justificar minha existência. Mas, no fim das contas, até os erros fazem parte da minha força. E não apago nada, porque tudo me trouxe até aqui”.
“Tenho muito orgulho de não ter desistido de mim. De ter enfrentado o preconceito, as dores, os julgamentos, e mesmo assim seguir em frente” (Foto: Reprodução/Instagram)
Representando também na arte e no carnaval
Thalita investe na carreira como atriz há 11 anos, já fez participações em filmes de Hollywood, em novelas da Globo como ‘A Força do Querer’ (2017), e em filmes nacionais como ‘Berenice Procura‘, de Allan Fiterman. “A vontade de atuar começou de forma natural, a partir do meu envolvimento com a moda, a televisão e a vontade de contar histórias através da arte. Sempre fui apaixonada por atuação, e sabia que, como mulher trans, ocupar esse espaço era também uma forma de quebrar barreiras e representar. Busquei me preparar fazendo cursos de interpretação, estudando técnicas de atuação e participei de workshops no Brasil e fora”.
Totalmente focada na preparação para o reinado à frente da bateria da Unidos da Ponte, ela fala da sua história com o carnaval. “Vem de muito cedo. Desde pequena, assistia aos desfiles com os olhos brilhando, encantada com aquela energia, com a força das mulheres na avenida, especialmente as rainhas de bateria, que sempre foram um símbolo de poder, beleza e resistência para mim”, diz.
Ser rainha de bateria nunca foi só sobre glamour ou destaque. É sobre representatividade, sobre ocupar um lugar de visibilidade com responsabilidade. É levar a energia da comunidade, da escola e da bateria no coração. Esse reinado não é só meu, é de todas as comunidades excluídas da sociedade – Thalita Zampirolli
“Ser rainha de bateria nunca foi só sobre glamour ou destaque. É sobre representatividade, sobre ocupar um lugar de visibilidade com responsabilidade” (Foto: Reprodução/Instagram)
O que diria para as pessoas que acham que as rainhas de bateria devem pertencer só ao universo do samba ou da comunidade? “Entendo esse sentimento, porque o samba nasce na comunidade, ele é raiz, é resistência, é identidade cultural. As rainhas que vêm da base, do morro, das quadras, têm uma história linda e merecem todo o reconhecimento. Mas o Carnaval também é sobre evolução, inclusão e representatividade. Acredito que o posto de rainha de bateria deve ser ocupado por quem respeita o samba, se dedica, honra a escola e entende o peso simbólico desse lugar. Me preparo, me envolvo, estou presente nos ensaios, estudo a história da escola e da comunidade. Então, mais do que ‘de onde você vem’, importa o quanto você está disposta a viver e respeitar essa cultura. O samba é plural. E tem espaço para todos que chegam com verdade no coração”.
Mesmo não ocupando um lugar de vulnerabilidade, ainda sente o preconceito na pele? “Sim, o preconceito ainda existe, ele só muda de forma. Hoje, por estar em um lugar de visibilidade e ter conquistado certa estabilidade, não enfrento as mesmas violências que tantas pessoas trans vivem diariamente, mas isso não me isenta de olhares, julgamentos e comentários maldosos, muitas vezes disfarçados de opinião”. E conclui:
“Tenho orgulho de ter me tornado referência para outras pessoas trans, de ter construído minha independência, minha carreira e de estar viva” (Foto: Alexon Lamin)
O preconceito aparece em situações sutis: em portas que se fecham sem explicação, em convites que não chegam, em gente que tenta deslegitimar minha trajetória ou reduzir minhas conquistas a estereótipos. Mas aprendi a lidar com isso com maturidade e propósito. Uso minha voz, meu corpo e minha história como ferramentas de resistência. Cada vez que ocupo um espaço com orgulho, estou dizendo a outras pessoas trans que elas também podem, que elas também merecem estar ali, com dignidade, respeito e sem precisar se esconder – Thalita Zampirolli