Mostra online celebra os 55 anos do primeiro Miss Travesti em Minas Gerais - O Tempo

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Euforia, glamour e luta foram elementos essenciais para que Belo Horizonte recebesse, naquele 27 de novembro de 1966, o primeiro concurso Miss Travesti em Minas Gerais. Desejo antigo da comunidade LGBT de então, o desfile já havia sido planejado diversas vezes, tendo sido sistematicamente interditado.

A edição inaugural de um projeto reprimido por anos, portanto, mobilizou a cidade, gerando expectativa e também hostilidade. No interior da extinta boate Cavalo Branco, dez travestis performaram para um júri criterioso, que, naquela noite, coroou a jovem Sofia de Carlo, de 19 anos. Do lado de fora, no entanto, o clima não era de acolhimento. No noticiário, o evento ganhou destaque, porém a abordagem majoritária era de exotismo e desqualificação. 

O episódio histórico é agora relembrado e celebrado na exposição “Entre Gritinhos e Emoções: 55 Anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte”, em cartaz no Museu Bajubá, um espaço dedicado à preservação da memória e do patrimônio histórico e cultural da população LGBTQIA+ brasileira.

Inteiramente virtual e gratuita, a mostra é dividida em oito salas expositivas virtuais que reúnem um completo acervo de imagens e textos sobre o concurso. Além disso, o visitante é apresentado a outros conteúdos que também refletem sobre importantes momentos da prática da “montação”, como as performances na mítica Galeria Alaska e o memorável show “Les Girls”, ambos no Rio de Janeiro. 

Grande vencedora do primeiro Miss Travesti de Minas Gerais, Sofia de Carlo é uma das personagens de destaque da mostra. A vitória, diga-se, significou um importante passo em sua trajetória. Logo, ela tornou-se figura emblemática da noite belo-horizontina, chegando a assumir a direção artística de várias casas noturnas da cidade. Sofia, que morreu em 2006, também era conhecida por ser uma cabeleireira e maquiadora requisitada por salões de beleza frequentados pela elite da época. “Ela foi uma espécie de liderança reconhecida até os anos 70 e 80”, lembra o pesquisador Luiz Morando, que assina a curadoria da exposição virtual. 

Resistência 

A partir do primeiro concurso, uma sequência de outros eventos do gênero ocorreu em BH, o que garantiu posterior visibilidade e até certo grau de liberdade, conforme contextualiza Luiz Morando. Para ele, “o concurso de 1966 significa, entre outros aspectos, o coroamento da resistência e da persistência de um segmento estigmatizado na cidade, reprimido pela ação policial, ridicularizado pela imprensa e alvo de ações higienistas pela Segurança Pública e o Judiciário”, assinala, ponderando que “a experiência de persistência entre 1961 e 1966 demonstra que já havia uma rede de homossexuais e de travestis em Belo Horizonte que se montavam e participavam desses eventos”. 

O pesquisador cita que, a partir de 1968, porém, houve um recrudescimento da repressão provocada pela ditadura militar no Brasil. Com isso, a censura voltou a impedir a realização dos encontros. Houve resposta das artistas, que organizaram tentativas clandestinas, mas a ameaça de prisão era perigo constante. Naquele ano, o então secretário de Segurança Pública, Joaquim Ferreira, assegurou que a polícia receberia os manifestantes com “cassetetes tamanho família”. 

Além de casas noturnas, as praças públicas na região central de Belo Horizonte passaram a ser alvos frequentes de operações policiais, que visavam encerrar qualquer tentativa de mobilização artística travesti. As praças Sete de Setembro, Rio Branco, Rui Barbosa, Raul Soares e Vaz de Melo eram os locais preferidos pela polícia. A intenção era impedir manifestações públicas de comportamentos considerados “fora do padrão”. O Parque Municipal era outro local de busca cotidiana. Por ali eram realizados encontros de travestis, chamadas pela imprensa da época de “tipos estranhos” e “delinquentes juvenis que vêm provocando uma verdadeira inversão dos costumes”.  

Contudo, apesar dos esforços no sentido de expulsar dali os que eram lidos socialmente como indesejados e perigosos, não houve política de repressão que impedisse que esses espaços fossem sendo paulatinamente ocupados pela comunidade queer que vive na capital mineira. 

Memória 

Na linha de frente da defesa da preservação da memória LGBTQIA+ belo-horizontina, Luiz Morando é cofundador do Museu Bajubá ao lado de Remom Matheus Bortolozzi, também especializado em pesquisa sobre o movimento LGBTQIA+ brasileiro, e de Rita Colaço, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e idealizadora da iniciativa. 

Com o projeto, o objetivo do trio é minimizar apagamentos das vivências LGBTI+ promovidos ao longo de décadas. Para isso, o museu reúne, organiza e difunde conteúdo documental, socioeconômico e cultural de toda a diversidade sexual e de gênero que envolve pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexo, entre outras. 

Em relação à mostra “Entre Gritinhos e Emoções: 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte”, Morando salienta que a ação é importante à medida em que possibilita possui valor documental, educativo e de preservação do patrimônio material e imaterial. 

Minientrevista 

Luiz Morando 

Pesquisador sobre identidades e sociabilidades LGBTQIA+ em Belo Horizonte e autor dos livros “Paraíso das Maravilhas: Uma História do Crime do Parque”, lançado em 2008, e “Enverga, Mas Não Quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”, publicado em janeiro deste ano. 

Qual a importância dos desfiles e competições para o reconhecimento da identidade travesti em BH naquele tempo? Como foi feita a pesquisa dessa história? E o que essa pesquisa revelou, inclusive, em termos de LGBTfobia? Embora o primeiro concurso Miss Travesti Minas Gerais, aberto ao público e com autorização policial, tenha ocorrido apenas em 1966, em Belo Horizonte, desde 1960 há notícias em jornais da cidade informando sobre tentativas de homossexuais e pessoas que praticavam a arte da montação realizarem concursos e desfiles, todos impedidos pela polícia. Porém, essas atividades acabavam acontecendo de maneira clandestina. Nesse sentido, o concurso de 1966 significa, entre outros aspectos, o coroamento da resistência e da persistência de um segmento estigmatizado na cidade, reprimido pela ação policial, ridicularizado pela imprensa e alvo de ações higienistas pela Segurança Pública e o Judiciário. A pesquisa para executar a exposição “Entre Gritinhos e Emoções: 55 anos do Concurso Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte” se insere no bojo de uma pesquisa maior que faço para resgatar a memória das identidades LGBTQIA+ da capital mineira, entre 1946 e 1989. O material usado na exposição foi rastreado na imprensa mineira e nacional, em processos judiciais (quando era o caso) e por entrevistas com pessoas que viveram aquela época. Essa pesquisa tem revelado que Belo Horizonte tem uma longa experiência de sociabilidade de pessoas dissidentes de sexo e gênero. O fato mais significativo que comprova isso foi a existência de um território dentro do Parque Municipal onde homens homossexuais ou bissexuais se encontravam à noite para desenvolverem uma cultura homoerótica. Eles próprios nomearam essa área como Paraíso das Maravilhas. O local também ficou famoso pelo escândalo provocado pelo Crime do Parque, em 1946. Minha pesquisa também tem revelado uma grande cultura de pessoas transgênero desde a década de 1930 na cidade, espaços exclusivos de sociabilidade do segmento LGBTQIA+ desde a virada dos anos 1950 e 1960, assim como muitas ações de violência e repressão aos direitos e ao livre trânsito desse segmento no espaço urbano. 

O Museu Bajubá está alinhado à sua linha de pesquisa e produção sobre a história e memória LGBTQIA+ em BH. Qual a importância dessa ação para a cidade? E quais são as principais dificuldades para se trazer essas histórias à tona? O Museu Bajubá é um projeto exclusivamente virtual para preservação e guarda da memória dos territórios de sociabilidade LGBTQIA+. Ele foi criado por iniciativa da historiadora e pesquisadora Rita Colaço, e sou um cofundador. No site do Museu, temos uma área que denominamos Estações, que correspondem às cidades que compõem o Museu e que têm como papel apresentar exposições e roteiros dos territórios de sociabilidade LGBTQIA+. Atualmente, são cinco Estações: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba e Campos de Goytacazes. A importância dessa ação pode ser vista em vários sentidos: registrar e guardar a memória desse segmento, especialmente para as gerações mais novas; um valor educativo, dada a qualidade das informações; a preservação de um patrimônio material e imaterial cuja tendência é de se perder; o desenvolvimento do caráter de cidadania cultural relacionado ao nosso segmento. Em contrapartida, as principais dificuldades estão relacionadas à busca e à guarda de acervos de pessoas que já faleceram e que não tiveram suas lembranças preservadas; à manutenção e organização de acervos LGBTQIA+ já existentes, em boas condições para pesquisa; à dotação de recursos financeiros para manutenção das atividades do Museu. 

Recentemente, duas ações colocaram a memória LGBTQIA+ belo-horizontina em evidência: na última semana, a parlamentar Iza Lourença (Psol) propôs cidadania honorária para Cintura Fina, que o senhor biografou em seu último livro; e, no mês passado, o Circuito Urbano de Arte (Cura) e o coletivo Viva JK fizeram uma projeção sobre a disputa territorial da praça Raul Soares entre diversos grupos antes de o lugar se firmar como espaço de sociabilidade LGBTQIA+. Como vê esses movimentos? Essas duas ações são demonstrações claras e fortes de que uma parcela da sociedade tenta se mobilizar para resistir e resgatar a memória LGBTQIA+. Seja uma vereadora cumprindo seu papel legislativo de propor homenagens, ainda que post mortem, a pessoas que foram marginalizadas durante sua vida pelo fato de serem dissidentes de gênero; seja a iniciativa de coletivos que organizam manifestações críticas e artístico-culturais que visam à revisão do papel e da memória de determinado espaço urbano, essas duas ações colocam no centro do debate questões urgentes no panorama reacionário e conservador em que vivemos: o respeito à diferença; a manutenção e ampliação de direitos; o resgate e a preservação da memória LGBTQIA+. 

SERVIÇO: 

O quê. Exposição “Entre Gritinhos e Emoções: 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte”, no Museu Bajubá 

Quando. Até 31 de março de 2022 

Onde. Online, disponível em museubajuba.org 

Quanto. Gratuito

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