Medos - Potiguar Notícias

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Bia Crispim

20/01/2023 09h46

Medos

Pediram-me para listar meus cinco maiores medos. Cinco? Impossível. Nasci com medo.

Tanto que cheguei no mundo com oito meses. Tinha medo que se chegasse aos nove alguma coisa pudesse dar errado. (Como sei? Não sei. Só sei.)

Desde sempre me percebi diferente da “norma”, do padrão social vigente, majoritário e imperioso. Fui uma criança dissidente, menino viado... Na verdade, uma criança Trans. (Não sabia que eu era possível. Não sabia que eu pudesse existir. Não sabiam. Ninguém!)

Tinha medo de ser descoberta. Medo de ir pro inferno. Medo de não ser aceita dissidente, viada, Trans. Medo de ser expulsa de casa e de perder o amor de quem sempre recebera. Medo da solidão.

Nasci com medo. Cresci com medo. Medo de ser violentada. Medo de ser morta. Medo de nunca namorar, de perder os amigos, de ser colocada pra fora dos lugares. Medo de usar um banheiro público.

Eu tinha medo de ser notada, de ser observada, de ser apontada. Medo de ser alvo de risos, deboche ou julgamentos. Medo de que minha presença se tornasse um evento de circo. (Era assim que eu algumas vezes me defini: como atração de circo, tipo “d’O Circo dos Horrores”)

Nasci sendo alimentada de medo, de autorrejeição, de culpa por existir. E enquanto eu não tomei consciência de que não havia nada de vergonhoso, de culposo, de errado a ponto de querer rejeitar quem eu era, o medo foi meu companheiro diário. E viver com ele não foi nada fácil.

Carrego muitas cicatrizes, traumas e dores causadas pelo medo. Ele potencializou tudo isso como pimenta braba que custa a parar de arder. Ter medo é ruim. Viver com ele é pior. É vertiginoso, algumas vezes desesperador. Ele apaga saídas. Ele te convida ao fim.

Aos doze anos tentei suicídio. Não tive medo. Bebi veneno. Brinco dizendo que fui salva por uma menstruação. Explico... uma irmã acamada devido às cólicas causadas pelo ciclo menstrual me salvou. Eu acreditava estar só em casa, o barulho que fazia vomitando o veneno que insistentemente bebia despertou-a.

Ela ia contar tudo aos meus pais? Tive medo que sim. Mas ela matou esse medo. Minha mãe só soube mais de vinte anos depois, quando senti a necessidade de revelar esse episódio a ela. Meu pai morreu sem saber. Cuidando de mim, minha irmã matou o medo de que eu seria expulsa de casa, matou o medo de que eu não seria mais amada. Matou o medo da solidão e do desamparo que eu acreditava ser meu futuro. Matou muitos medos.

Há medos ainda? Muitos. Alguns são fantasmas, sonhos ruins e restos de uma época remota. Outros continuam concretos, sobretudo aqueles que estão ligados ao ódio, à falta de aceitação e às tentativas de aniquilação das existências de pessoas como eu: uma pessoa Trans. Uma Travesti.

Algumas vezes eles são extremamente potentes, pesados e aterradores. Afundam-me em poços escuros e fundos, frios e solitários, claustrofóbicos e sufocantes. Difícil sair deles. Faço SOS. Grito por ajuda (o que tenho recebido, na maioria das vezes, para minha salvação). Outras vezes são como insetos que um Baygon extermina em uma pulverizada. Desses eu dou boas gargalhadas depois.

Nasci com medo. Cresci com medo. Vivi com medo. Hoje tenho o medo como um aliado de sobrevivência. O mundo continua hostil e o Brasil ainda é o país onde mais se matam pessoas Trans/Travestis. Então o medo me serve como termômetro, como medidor. E dependendo do seu grau, eu vou vivendo, com mais ou menos medo...

Mas, eu vou vivendo...

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).

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