Homens trans e assistência ginecológica: medo, dor e constrangimento - Estado de Minas

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Cadeira de um consult'No s mulheres cis podem ser acometidas por cncer de mama. Homens cis e pessoas transexuais e transgneros tambm' (foto: Pavel Danilyuk)

H uns 15 dias, mais ou menos, fui pela primeira vez ao ginecologista depois do incio da minha transio. Foi uma consulta por meio do meu plano de sade. Pra quem no sabe, sou um homem negro retinto, trans e neurodiverso (no meu caso, dislexia e TDHA). Isso mesmo, homens trans tambm precisam ir ao ginecologista. E nessa semana tive que voltar l, mas antes tive que me preparar psicologicamente e tirar fora e coragem do “suvaco”. “Mas por que, Arthur?”

Vamos l: na primeira vez que cheguei no endereo do consultrio mdico, de cara me deparei com o porteiro me olhando de cima a baixo, com cara de assustado e com frases do tipo: “Voc quer vemos mesmo o doutor X? Voc veio fazer uma entrega para ele, n?" 

E como j falei, nesta semana tive que voltar l. Tanto a secretaria como o mdico mais uma vez me trataram muito bem, de forma humanizada, mas mais uma vez, quando passei pelo porteiro do prdio, ele me olhou com uma cara de assustado. Dei bom dia, falei que tinha horrio com o dr X e dei minha identidade. Vale ressaltar, que j fiz minha retificao de nome, ou seja, na minha identidade j tem meu nome, Arthur. Mas mesmo com a minha identidade nas mos, o porteiro perguntou: “Qual seu nome?”. Na mesma hora respondi, ‘ Arthur, est no documento!’. 

Imagina s, sempre que voc precisa de atendimento sade acaba tendo que dar mil explicaes, explicaes de “porque voc assim”, tem que explicar vrias vezes qual a diferena de uma pessoa trans e uma pessoa cis, alm disso, sempre tem que escutar frases passivo agressivas do tipo: “, as coisas esto mudadas mesmo, no meu tempo no era assim, mas cada um faz o que quiser da vida, n”, como se ser trans fosse algo errado, ruim ou/e apenas uma escolha. Ou imagine se sempre que  voc procurasse atendimento mdico as pessoas que trabalham no lugar te olham assustadas, te encarando como se fosse um ser de outro mundo? Com certeza isso iria impactar na sua ansiedade, sua sade mental, iria gerar medo e um sentimento de no pertencimento gigantesco. 

Talvez voc esteja pensando: “Poxa Arthur, o porteiro, nem a secretria, nem mesmo o mdico tem a obrigao de adivinhar que voc um cara trans”. Mas no estou pedindo adivinhao. Eu estou falando de respeito na prtica. Estou falando da importncia da promoo ao acesso sade para todas as pessoas, da necessria naturalizao da presena de corpos trans em hospitais, consultrios mdicos, centros de sade, clnicas, e por a vai. 

Estou falando da falta de investimentos para promover sensibilizao, conscientizao e informao s pessoas que trabalham diretamente ou indiretamente com a rede privada de sade e na sade suplementar. Sabe o senhor que trabalha como porteiro no prdio? A ideia aqui no transformar ele em vilo. Longe disso. Quero ressaltar que com certeza ele s teve essa atitude porque faltou informao e treinamento. Se ele tivesse passado por um programa de diversidade e incluso, com certeza o porteiro teria outras formas mais adequadas de abordar pacientes trans. 

“Ah, Arthur, voc est exagerando”. Infelizmente no estou. J relatei aqui em um outro artigo que para evitar constrangimentos e discriminaes uma vez pedi a recomendao de endocrinologistas que j atendiam pessoas trans. Recebi mais de trs indicaes de um mesmo mdico. Ento fiquei mais relaxado, sem tanto medo ou receio. Mas, assim que ele abriu a porta, j soltou uma enxurrada de “piadas” transfbicas e homofbicas. 

Em um determinado momento, j no aguentando, perguntei se ele realmente j tinha experincias de atender pessoas trans e disse que aquela atitude no era correta. Nossa conversa se prolongou e ele resgatou a memria da primeira vez que viu uma mulher trans. Ele estava de 5 para 6 anos. Segundo o mdico, todas as pessoas adultas que estavam no mesmo ambiente deram risada e fizeram “piadas” em relao a mulher trans sem nenhum pudor. Depois de muito refletir, o mdico percebeu que ele naturalizou essa situao absurda durante toda vida.  

Ou seja, mesmo chegando vida adulta, mesmo tendo um poder econmico mais elevado, mesmo com acesso educao e tendo uma profisso que tem como base o atendimento a diversas pessoas, este mdico ainda reproduzia esteretipos e preconceitos contra a comunidade trans por mais de 50 anos. 

Infelizmente, algumas mdicas e mdicos chegam ao ponto de se recusarem a tocar o corpo de pessoas trans por nojo ou receio, ainda que isso seja feito de uma maneira “sutil”. Outros profissionais justificam a recusa em atender com o argumento de que nunca atenderam uma pessoa trans e, por isso, preferem no arriscar. 

Ou seja, esteretipos, preconceito e desinformao se manifestam na forma como esses profissionais atuam em relao populao trans.

S para voc ter ideia, em janeiro de 2020, participei da produo de um programa jornalstico que tinha como principal tema as vivncias de pessoas trans. Uma das entrevistadas compartilhou que, durante uma consulta mdica, ao explicar que era uma mulher trans, antes mesmo de explicar qual era o motivo que a levou at o consultrio, o mdico pediu uma triagem de exames para saber se ela tinha alguma infeco sexualmente transmissvel. Infelizmente, ainda hoje, muitos profissionais subentendem e associam o meu corpo trans a IST's. 

Alm disso, durante consultas mdicas, alguns profissionais da sade ainda se recusam a respeitar o nome e pronomes de pessoas trans. Alis, muitas vezes nosso constrangimento j comea na recepo do consultrio ou hospital, quando em alto e bom som anunciam nomes que no so os nossos. Situao que sempre vem acompanhada de risadas, “piadas” e olhares invasivos. 

E sempre importante lembrar, ainda mais nesse Outubro Rosa de conscientizao, preveno e combate do cncer: no s mulheres cis podem ser acometidas por cncer de mama. Homens cis e pessoas transexuais e transgneros tambm. Mas como a populao trans pode procurar orientao, consultas, exames e tratamento se o sistema de sade ainda insiste em ignorar nossa existncia? 

Ns, pessoas trans e travestis, no somos nmeros frios, no somos entretenimento ou seres exticos. Ns tambm temos necessidade de procurar atendimento sade. A eu pergunto, a rede de sade privada e suplementar tem investido em palestras, mentorias, rodas de conversa, programas completos de diversidade e incluso para melhor acolher a comunidade trans e travesti?

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