
Em 1966, Belo Horizonte era relativamente nova. Mas do alto de seus 69 anos, viu muito coisa acontecer, naquele momento em que a ditadura intimidava a capital mineira. E, nesse cenrio, um grupo radicalizou e se imps. Naquela ano, a cidade viu o primeiro Concurso de Travesti de Minas Gerais. O assunto tema de uma das exposies virtuais do Museu Bajub (www.museubajuba.org), criado h pouco mais de um ano.
Segundo Luiz Morando, pesquisador independente sobre memria LGBTQIA+ de Belo Horizonte, o museu “ uma instituio de natureza virtual para preservar a memria dos territrios onde as formas de sociabilidade LGBTQI se constituram, bem como dos
eventos e pessoas que se projetaram nesses ambientes”.
Quem navegar pela pgina, poder conhecer as exposies em cartaz e os futuros roteiros das estaes que compem o museu (Rio de Janeiro, BH, So Paulo, Curitiba e Campos de Goytacazes). “A base de nossa ao pensar nossa iniciativa como fundamento da cidadania cultural do pblico LGBTQI ”, afirma Morando.
“Entre gritinhos e emoes – 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte” uma das exposies. “O pblico tem sido bastante receptivo, utilizando o material das duas exposies em escolas e como referncia para estudos. Nesse sentido, o museu cumpre seu papel educativo tambm”, declara o pesquisador.
Curioso ver que o primeiro concurso de Miss Travesti em Minas Gerais completou 55 anos. Ou seja, foi promovido em plena ditadura. De l pra c, muita coisa mudou. Hoje, o movimento LGBTQI , apesar dos ataques do governo federal, tem mais a comemorar ou lamentar?
Apesar do atual governo, reacionrio e conservador em todos os mbitos, o movimento LGBTQI ainda pode co- memorar. Isso se deve, contraditoriamente, a conquistas adquiridas por meio de decises do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de 2011, como o reconhecimento da unio civil entre pessoas do mesmo sexo; a converso da unio em casamento civil; a adoo de crianas por pessoas LGBTQI ; a alterao de nome civil por pessoas transgnero diretamente em cartrios; a equiparao da LGBTfobia ao crime de racismo; a doao de sangue.
No Museu Bajub, existe uma variedade de recortes de jornais dos anos 1960 mostrando como os meios de comunicao de BH, quela poca uma capital provinciana, fi- zeram ampla cobertura do evento. O que levou ao interesse de cobertura to ampla em pleno anos de chumbo?
A variedade de recortes de jornais re- vela um olhar majoritariamente preconceituoso, apressado em estigmatizar a diferena e reforar a discriminao. Por um lado, a imprensa cum- priu o seu papel de noticiar o que novidade; por outro lado, seu discurso sempre foi moralizador, de apoio a uma ordem j estabelecida (da famlia heterocentrada) e a aes de violncia, por parte da polcia contra o pblico LGBTQI .
O concurso quase no aconteceu por interveno da polcia, mas, no fim das contas, Sofia de Carlo (Belo Horizonte), Erika (Passos), Diva de Windsor (Varginha), Mara (Juiz de Fora), Serena (Santa Luzia), Ma- rilu (Divinpolis), Mireille (Itapecerica), Maria Raquel (Patos de Minas), Silene (Ouro Preto) e uma candidata no identificada de Uberlndia fizeram o desfile. O ttulo ficou com Sofia. O que se sabe da trajetria dessas pessoas?
Consegui rastrear a trajetria de apenas trs delas – Sofia de Carlo, Erika e Diva de Windsor. Entre as trs, Sofia de Carlo foi a nica que permaneceu em Belo Horizonte e assumiu, a partir de 1967, a realizao dos concursos e desfiles de Miss Travesti at a dcada de 1980. Ela se tornou uma referncia para a comunidade LGBTQI nesse perodo e obteve grande reconhecimento pelas aes culturais voltadas a esse pblico nos bares, boates e saunas frequentadas por aquele segmento.
Em um dos recortes de jornal, chama a ateno o fato de senhoras catlicas da cidade e a Sociedade de Tradio, Famlia e Propriedade pedirem satisfao Secretaria de Segurana, que "permitiu tama- nha afronta s tradies de honradez e polidez de Minas Gerais". Estamos em 2021, mas ainda existem grupos que se escandalizam com o fato de, por exemplo, o filho do Super-Homem ser bissexual. Por que a questo LGBTQI ainda continua sendo sinnimo de preconceito em parte da sociedade?
Infelizmente, o preconceito uma condio intrnseca ao ser humano. Nossa disposio e nossa luta devem ser de combater o preconceito e a discriminao, de educar quem age desse modo, para que as pessoas no tenham seus direitos diminudos ou retirados. Em particular, pessoas LGBTQI ainda tm sua existncia em risco, sendo alvo de muitas aes de violncia que retiram suas vidas, levando o Brasil a ocupar uma posio mundial inaceitvel de liderana de mortes de pessoas LGBTQI .
Quais so os desafios tanto para o movimento LGBTQI quanto para o prprio museu em tempos to complicados?
So vrios os desafios! Em relao ao Bajub, posso dizer que so pelo menos dois grandes: captar recursos financeiros para garantir a continuidade das aes (as leitoras e os leitores podem visitar nossa lojinha no site do museu) e ampliar o nmero de estaes que compem o museu para diversificar e garantir a pluralidade de culturas regi- onais LGBTQI do Brasil.
Qual o seu grande sonho em relao ao museu?
Que o Museu Bajub seja reconhecido como uma referncia contnua para a guarda e preservao da memria LGBTQI no Brasil.