Eu sou ela! A necessidade de travestilizar a sociedade - CartaCapital

3 years ago 1296
ARTICLE AD BOX

Linn da Quebrada entrou no BBB, programa que todo inicio de ano mobiliza com grande abrangência a população em geral e que costuma orientar os temas centrais que circulam em redes sociais, mesas de bar e pontos de ônibus.

Não é a primeira vez que uma pessoa transgênera participa do programa, mas é a primeira vez que uma pessoa que reivindica a identidade travesti ocupa esse espaço e, como já era de se esperar, sabíamos que essa entrada causaria muito debate, exatamente pelo fato de que a sociedade não admite existências que fujam da norma binária de gênero imposta pelo patriarcado.

A cisgeneridade costuma imputar a nós, pessoas trans, a educação sobre a transgeneridade, mas esquece que foi ela que nos denominou como tal. Não inventamos termos ou nomes para explicar nossa existência, apenas ressignificamos ofensas e xingamentos que foram utilizados para nos diminuir em nossa existência, motivados pela ameaça que somos ao sistema de poder que precisa de homens e mulheres e das categorias de opressão entre eles e suas intersecções rejeitadas. Sabemos que o guarda-chuva transgênero abarca diversas existências que não performam a binariedade de gênero determinada pela genitália, mas hoje quero falar sobre travesti, identidade que também reivindico como minha existência.

Em pesquisa rápida nos dicionários e no Google achamos alguns conceitos cisnormativos sobre travesti: 1. substantivo masculino e feminino. Em espetáculos ou shows, o artista que se veste com roupas características do sexo oposto. Geralmente, refere-se aos homossexuais cujas vestes e/ou comportamentos denotam particularidades ou ações características do sexo oposto; 2. Pessoa que se veste com roupas do sexo oposto, geralmente, em espetáculos teatrais ou para ter satisfação psicológica; 3. Homossexual que se veste de mulher; traveca, travecão, traveco; 4. Disfarce sob o traje de outro sexo; 5. Disfarce de pessoa sob outro sexo.

Somos, para a cisnormatividade, uma farsa ou uma performance. Por isso, Lina, a pessoa por trás da personagem Linn da Quebrada, se apresentou no programa como o “fracasso do que as pessoas esperam de nós”, porque não queremos e não vamos performar o que esperam que sejamos: uma existência momentânea que performa uma outra existência que nunca será a nossa. Quando usaram o termo para nos ofender nas esquinas onde lutamos para sobreviver, nossa ancestralidade ou – como Renata de Carvalho, atriz e travesti costuma afirmar – nossa Transcentralidade ousou assumir este termo e dizer, com orgulho: sou travesti!

Aliás, ousadia é nosso sobrenome, porque o pré-nome não é o que nos impuseram, é o que escolhemos. Ousamos assumir a identidade de gênero feminina e, mesmo assim, nem sempre nos reconhecermos como mulher, mas tão gênero feminino quanto qualquer outra. Ousamos reivindicar um lugar ao lado da mulher entre as mulheridades possíveis e por isso, como me ensinou Keila Simpson, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais e minha eterna liderança: “Não somos homem, nem mulher!”. A frase também foi usada por Linn em suas músicas e no BBB.

Sei que isso soa confuso para quem sempre aprendeu que só existe homem ou mulher, mas peço a você, pessoa cisgênera, que dispa-se um pouco das normas patriarcais e entenda o quão opressor é obrigar que nossos sentimentos profundos sobre nossa existência sigam as regras do ‘ser homem ou mulher apenas’, e que isso seja determinado por uma parte do nosso corpo. Esse é o primeiro passo para desconstruir a cisnormatividade e permitir que o que se ouve seja assimilado – e, assim, quando uma travesti disser que é ELA, não seja tão difícil entender e seguir o tratamento, respeitando sua identidade de gênero. Porque não é sobre ser difícil gravar um pedido, é sobre reconhecer e respeitar que outras identidades de gênero diversas possam existir. E atente que a travestilidade é só uma porta para muitas identidades que ainda estão por ganhar visibilidade, como a não binariedade e\ou a ageneridade, ou seja, esse ainda é o início de uma longa jornada de desconstrução.

Então, sim, somos TRAVESTIS e isso não é sobre performar, é sobre ser. E não precisamos do aval científico, acadêmico, jurídico ou qualquer outro para conduzir nossa existência, apenas sentir e ser, mas, sim, precisamos ser respeitadas para mantermos a cordialidade entre nós. Nossa revolução nunca é silenciosa, mas não precisa ser uma resposta agressiva diante de tantos ataques, ofensas e até assassinatos simplesmente por sermos quem somos – porém, se o momento pedir, seremos, porque Luana Muniz já avisou: “travesti não é bagunça!”.

E, sim, estamos para a tabelinha de gênero no mesmo lugar de todas as mulheres, porque somos tão femininas quanto qualquer outra, mesmo que o privilégio cisgênero tenha acometido aquelas que se sentem donas do feminismo e que insistem em nos deslegitimar. Seguimos fortes ao lado das manas que entendem o feminismo plural e interseccional e um salve gigante a elas, que nos ajudam a perceber que vivenciar o feminino é desconstruir qualquer toxidade masculina que nos atravessou em nossa construção como ser humano.

Não somos performance, porque não deixamos nossa mulheridade na gaveta quando chegamos em casa. Ela não fica numa gaveta, não sai com água junto com a fantasia de carnaval, ela é parte de nós e assim segue 24 horas por dia da nossa vida cotidiana. Por isso, não dá pra confundir e sugerir que somos ele, quando estamos tomadas de uma fertilidade feminina inabalável que, com toda sua força, grita: EU SOU ELA!

Quer um resumão cisgeneridade? Travesti é ela e pronto. Quanto às outras pessoas trans, pergunte antes e siga respeitando o que lhe for dito. Sobre as referências que aqui coloquei, aproveite a Visibilidade Trans coroada no dia 29 de janeiro e ‘dê um Google’ nesses nomes, pesquise, leia, ouça e prestigie essas e outras pessoas trans, pois temos muito a dividir e compartilhar. Não queremos simplesmente existir, mas também co-existir ao lado de todes vocês.

Leia o artigo inteiro
LEFT SIDEBAR AD

Hidden in mobile, Best for skyscrapers.