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07:00 BT
Caê Vasconcelos e Yasmin Torres
No Dia Nacional da Visibilidade Trans, Sheilla Souza, a primeira mulher transexual a jogar futebol feminino profissional no Brasil, falou com exclusividade à ESPN Brasil
''Na cabeça do meu pai eu ia virar homem se jogasse futebol''. Foi assim que Sheilla Souza, de 31 anos, começou a se aventurar no mundo da bola.
Ao contrário do que se pode pensar, a primeira mulher transexual a jogar futebol feminino profissional no Brasil, tinha pavor do esporte no qual hoje é apaixonada.
Isto porque foi através do futebol que seu pai tentava fazer com que ela se sentisse alguém que ela não era.
''Eu odiava jogar. Por eu ter um irmão homem e hétero, meu pai sempre pedia para eu ir para o campo com ele, porque ele já percebia que o meu jeito era completamente diferente do meu irmão. Ele tentava me empurrar para todas as atividades que meu irmão fazia. Na cabeça dele, eu iria virar homem se eu jogasse futebol. Então, ele me obrigava a ir para o campo e colocou isso na minha rotina. Eu comecei jogando com os meninos''
''Quando eu fiz 16 anos eu disse: ‘Não, eu aprendi a jogar bola, estou apaixonada por futebol, mas não me vejo nesse meio, no meio de homens. Eu ia na bola com medo de me machucar. Aí foi quando eu conheci um grupo de meninas que chamaram para treinar com elas e eu fui. Eu comecei a treinar com elas, mas não podia disputar nenhum campeonato na região por não ter registro feminino e nem aparência tão feminina. Muitas mulheres diziam que eu era homem e que eu não podia jogar com elas porque a minha força era diferenciada'', contou a atleta em entrevista exclusiva à ESPN Brasil.
Foi aos dezesseis anos que Sheilla percebeu que havia nascido dentro de um corpo ''estranho'' e que a forma com que se olhava no espelho era bem diferente da que todos realmente a enxergavam.
‘’Eu sempre me via como uma pessoa bem feminina. A partir dos meus 16 anos, eu comecei a ter uma visão maior de mim e do meu corpo. Eu não sentia vontade de estar no corpo que eu tinha antes. Com os meus 16 anos eu comecei o meu processo de transformação e só aos meus 21, quando eu fiquei responsável por mim mesma, que eu comecei o período de transição'', lembrou a jogadora.
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Sheilla Souza, a primeira mulher trans a jogar futebol no Brasil, concedeu entrevista exclusiva à ESPN Brasil | Foto: Reprodução/Instagram @sheilla940
Registro no cartório
Aos 21 anos, a atleta começou a transição, com um tratamento hormonal acompanhada por um trio de profissionais da saúde: endocrinologista, psicólogo e psiquiatra.
Mas somente 26, após muita burocracia, conseguiu mudar o seu nome no cartório para participar de competições. A partir dali, o antigo nome deixou de existir para a sociedade, que foi devidamente apresentada à jogadora Sheilla. O sobrenome permaneceu o mesmo, Souza de Jesus, como forma de honrar sua família.
''Aqui na minha cidade [Biriginga-BA] eu fui a primeira trans a conseguir um registro no cartório civil e o meu título de eleitora. Quando eu recebi uma mensagem da promotora do cartório, pediram a minha presença lá e ela me disse que meu nome tinha sido modificado. Foi uma surpresa para mim. Quando ela disse: 'Sheila, felizmente o seu registro saiu', eu fiquei muito emocionada'', relembrou.
Estreia como profissional
Com o nome registrado e com a dose de testosterona abaixo de 10 nanomols por litro de sangue, nível determinado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) desde 2015, Sheilla estava apta a inscrever em campeonatos profissionais femininos. Ela lembra que, mesmo assim, no início, alguns times reivindicaram sua participação.
Até que em outubro de 2020, depois de não passar em um teste para o Vitória e atuar em times amadores de Biritinga, cidade onde morava com seus pais, a jogadora recebeu o convite, através de suas redes sociais, para o primeiro clube profissional de sua carreira: o Desportiva Lusaca, de Camaçari (BA).
E foi em um amistoso no estádio de Pituaçu, que Sheilla, até então lateral-direita, se tornou de fato a primeira mulher transexual a jogar futebol profissional feminino no Brasil. A notícia, no entanto, ganhou repercussão na internet e jogadora foi alvo de preconceitos e xingamentos.
''Eu cheguei em casa e falei assim ‘professora, olha as mensagens transfóbicas que eu estou recebendo de homens que não tem conhecimento’. Eu digo isso porque são pessoas que realmente não têm conhecimento. Eu ouvi de um que marcou em mim : ‘Eu vou colocar uma peruca, silicone e vou mudar de nome para eu virar uma jogadora famosa, porque nunca vi homens jogarem no meio de mulheres'', lembrou.
Transfobia
Em meados de 2015, Sheilla resolvou dar uma pausa no futebol e foi morar com uma prima no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, por um ano e seis meses. Lá, viveu o pior momento de toda a sua vida quando foi vítima de chutes e pontapés de um grupo de homens na rua.
''Eu tive um constrangimento quando eu passei por um momento muito ruim quando morei 1 ano e seis meses em São Paulo. Eu fui vítima de transfobia, onde vários homens me espancaram na rua de noite. Foi um momento muito ruim na minha vida. Isso nunca se apagou, mas hoje não me afeta mais psicologicamente. O que mais me afeta e me deixa triste, é a questão familiar'', disse.
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Sheilla Souza, a primeira mulher trans a jogar futebol no Brasil, concedeu entrevista exclusiva à ESPN Brasil
Formiga: a inspiração
Aos 31 anos, Sheilla hoje atua no Serrinha, clube amador do futebol baiano, e almeja voar mais alto. A inspiração vem da veterana Formiga, que brilhou na seleção brasileira e que agora defende o São Paulo.
''Formiga é um exemplo de ser humano, de atleta, ela é uma pessoa incansável. Ela me inspira e me fortalece. Todas às vezes que estou cansada, penso ‘Formiga tem essa idade e não demonstra isso. Então, vamos Sheilla. Ela me inspira muito, muito, muito mesmo'', disse antes de completar:
''Me sinto muito feliz em puder representar minha classe LGBTQIA+ no Brasil e no mundo. Eu fico muito honrada. É inexplicável o que eu sinto por ser a primeira trans no futebol profissional feminino no Brasil. Quero lutar cada vez mais e buscar sempre o melhor de mim todos os dias para mostrar para o Brasil que não é por eu ser trans que eu não vou conseguir. Eu vou conseguir sim. Quem sabe amanhã eu não defenda a seleção brasileira, seja a primeira trans a vestir a camisa amarela?''.