Nesta semana, em aula ministrada para o curso de pós-graduação da International Health, da Charité – Universitätsmedizin Berlim, a pesquisadora, antropóloga e ativista travesti Pisci Bruja apresentou uma análise sobre a trajetória histórica das transgeneridades e travestilidades no Brasil. A partir do conceito da “tríade moral” – formada por Igreja, Estado e Medicina –, Pisci demonstrou como esses três pilares se articularam ao longo dos séculos na construção de um regime de controle e exclusão sobre corpos dissidentes de gênero e sexualidade.
“A tríade moral não pertence ao passado. Ela segue atuando como um dispositivo ativo, atualizado na ausência de políticas públicas e nas práticas institucionais que continuam tratando a diferença como ameaça”, afirmou Pisci.
O peso histórico da moral cristã e da patologização
A pesquisadora resgatou, em perspectiva histórica, a forma como a Igreja impôs uma moralidade cristã que reprimiu expressões de gênero e sexualidade fora da norma, apagando sistemas culturais indígenas e africanos que reconheciam múltiplas formas de existência. Mais tarde, o Estado consolidou essa moralidade em leis, códigos penais e práticas de vigilância, transformando a diferença em ameaça à ordem social.
Na modernidade, explicou Pisci, a Medicina passou a ocupar o papel de legitimar cientificamente a exclusão, classificando identidades e comportamentos como patologias. “O corpo foi submetido a uma gramática colonial e biomédica que naturalizou a cisheteronormatividade como padrão universal”, observou.
Mesmo com avanços recentes, como a retirada das transgeneridades do capítulo de transtornos mentais na CID-11, a pesquisadora alerta que a lógica patologizante segue viva nos serviços de saúde. “O desafio de despatologizar vai muito além do diagnóstico. Ele está nas práticas cotidianas e nas instituições que ainda operam sob o mesmo paradigma”, destacou.
Resolução do CFM: “um movimento de repatologização institucional”
Pisci dedicou parte de sua exposição à análise crítica da Resolução nº 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que revisa os critérios para o cuidado de pessoas trans e travestis. A norma proíbe o uso de bloqueadores hormonais antes dos 18 anos, restringe o início da hormonização à maioridade, estabelece 21 anos como idade mínima para cirurgias com potencial esterilizante e retoma a obrigatoriedade de acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por pelo menos um ano para autorizar o uso de hormônios.
“Trata-se de um movimento de repatologização institucional. O CFM reedita o poder da medicina de validar identidades e negar às pessoas trans o direito à autodeterminação”, afirmou.
Segundo Pisci, a resolução ignora diretrizes internacionais de cuidado afirmativo, como as da CID-11, WPATH e Endocrine Society, e contraria um vasto acúmulo de evidências científicas que apontam os benefícios do acesso precoce a bloqueadores e hormônio para a saúde mental de adolescentes trans – reduzindo casos de depressão, ansiedade e ideação suicida.
“Ao bloquear esse acesso, o CFM aumenta o risco de sofrimento psíquico e empurra essa população para a marginalização e à clandestinidade”, alertou a pesquisadora.
Ética, cuidado e o futuro do SUS
Pisci enfatizou que a crítica à “tríade moral” é também um convite à reconstrução ética do cuidado e dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). “Questionar essa estrutura é um gesto de reconstrução ética em torno do cuidado e dos próprios princípios do SUS”, disse.
Sua fala foi recebida com atenção pela comunidade acadêmica internacional, reafirmando a centralidade das vozes travestis e trans na produção de conhecimento sobre saúde, corpo e direitos humanos.
“Despatologizar significa ir além de retirar o diagnóstico, mas reinventar o cuidado e as instituições, e repensar a importância da autodeterminação de gênero, coisas que nos tem sido historicamente negadas”, concluiu Pisci.
Redação da Agência de Notícias da Aids
Dica de entrevista
Pisci Bruja
Instagram: @piscibruja


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