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O doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Brasília (UnB) Lourival Ferreira de Carvalho Neto ganhou prêmio por um ensaio fotográfico que retrata o cotidiano de Jade, uma travesti e quilombola que vive em comunidade no Paraná.
O trabalho, intitulado Quilombismo travesti, venceu o Prêmio Ana Galano, concedido durante o 45º Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Lourival esteve no quilombo Surubiu-Açú, na região do Baixo Amazonas, em Santarém (PA), em três ocasiões para observar o cotidiano de Jade, de 55 anos. Na obra, o pesquisador registra momentos de trabalho e de descontração da travesti junto à comunidade.
“A Geni, de Chico Buarque, traduz bem o lugar de uma travesti: feita para apanhar, é boa de cuspir. A vida de uma travesti é um inventário da crueldade desses nossos tempos. Jade, protagonista do ensaio, inverte isso. Está mais para a ‘Travesti’ do Fim do Mundo, de Elza Soares, com toda sua potência. É quilombola e travesti. E respeitada”, descreve.
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Jade mora na comunidade Surubiu-Açu, no ParanáLourival de Carvalho
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Ela é pescadora, apicultora e agricultoraLourival de Carvalho
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Também atua como "consertadeira" ou "puxadora"Lourival de Carvalho
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Ensaio fotográfico retrata o cotidiano de JadeLourival de Carvalho
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Trabalho foi premiadoLourival de Carvalho
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"Está mais para a ‘Travesti’ do Fim do Mundo, de Elza Soares, com toda sua potência. É quilombola e travesti. E respeitada", descreve o pesquisadorLourival de Carvalho
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Lourival de Carvalho é aluno de doutorado da UnBArquivo pessoal
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Ele considera o prêmio um reconhecimentoArquivo pessoal
Rotina intensa
Jade é apicultora, agricultora e pescadora, além de desenvolver o trabalho de “consertadeira” ou “puxadora”, tarefa que combina reza e técnicas de massagens para curar dores musculares. Semanalmente, ela “conserta” de 15 a 20 pessoas.
Em época de cheia do Rio Amazonas, chega a passar 30 horas, sem interrupções, na pesca. Também é habilidosa com as abelhas. “Tira mel de abelha ‘brava’ no mato, e, mesmo sem a proteção devida, sai sem picadas, e cria as ‘mansas’, em caixotes, dentro de casa também”, conta Lourival.
Na seca, as atividades são mais voltadas para o plantio de mandioca, banana e pimenta. Além disso, cria galinhas e seu pintinhos, a quem Jade chama de “filhinhos”. É nesse período que costumam ocorrer mais festas e interação entre a comunidade. O doutorando conta que precisou de fôlego e tato para acompanhar a rotina intensa.
“Quem chegava para ser puxado(a)/consertado(a), por exemplo, estranhava a minha presença ali. Era preciso um silêncio. Às vezes, uma apresentação mais elaborada”, explica.
Direito à diferença
O ensaio é parte da pesquisa de doutorado em Direito, Estado e Constituição, na qual Lourival estuda o direito à diferença no mundo comunitário.
Inicialmente, as fotografias seriam usadas como material complementar da pesquisa, a partir do registro de cenários, que mais tarde ajudariam na escrita do trabalho final. Mas, o doutorando percebeu que também poderia contar a história de Jade por meio das fotos.
“As imagens têm uma adesão maior do público e foi a forma que encontrei para devolver parte do resultado ao quilombo. As fotografias são testemunhos encarnados de uma narrativa.”
O tema de gênero e sexualidade faz parte da trajetória de Lourival. Durante a graduação, na Universidade Estadual do Piauí, estudou sobre o direito à educação superior a partir da experiência do Grupo Piauiense de Travestis e Transexuais do Piauí (GPTRANS).
O interesse pelo assunto vem de experiências pessoais como homem gay. “Meu avô, vaqueiro e analfabeto, hoje com 83 anos, foi o único que nunca havia manifestado qualquer forma de discriminação quanto a mim e a outros familiares LGBTQIA+. Isso me fez olhar para espaços, como uma comunidade rural no Piauí, com outra perspectiva”, lembra.
Reconhecimento
Para o doutorando, o prêmio representa o reconhecimento de um trabalho sobre o tema que ainda é controverso para a sociedade. Por isso, salienta a importância de mostrar personagens capazes de gerar identificação com aquilo que as pessoas vivem e sentem. Também acredita que o prêmio pode incentivar outras pessoas a documentar histórias semelhantes às de Jade.
“Ligar para Jade, que pescava no rio Amazonas, e dizer que deu certo, que fomos homenageados, não tem preço”, comemora Lourival. “Pessoalmente, significa um estímulo a mais na pesquisa e, também, um acalento à criança que fui: também oprimida por sua sexualidade, mas que amava fotografar, escrever e falar”, acrescenta.