No último dia 4 de abril, na cidade de Arapongas, norte do Paraná, Eloá Santos, mulher transexual, foi presa por supostamente ter praticado um roubo naquela cidade. Posteriormente, foi encaminhada à cadeia pública daquela cidade, onde ficou recolhida em uma ala masculina e teve seu cabelo raspado [1]. Quase duas semanas depois, a Justiça mandou soltá-la, com o uso de tornozeleira eletrônica,
A prática de raspar o cabelo dos detentos é usual nas unidades prisionais do país, mas ela é realmente necessária? No caso de mulheres, inclusive transexuais, essa prática encontra embasamento legal?
A questão sobre a justificativa para o ato de raspar o cabelo já foi abordado tempos atrás quando da prisão do DJ Ivis [2], que também teve seu cabelo raspado. O objetivo desse conteúdo não é de defender ele ou ela pelo mal injusto cometido, mas sim analisar os justificadores reais e latentes do ato de raspar os cabelos.
Conforme Portaria nº 1.191, de 19 de junho de 2008 do Ministério da Justiça, é competência do Chefe da Divisão de Segurança e Disciplina (artigo 2º, VIII) realizar o processo de higienização pessoal, incluindo: a) cortar cabelo, utilizando-se como padrão o pente número 2 da máquina de corte; b) raspar barba; c) aparar bigodes.
Essa portaria, válida somente para as unidades federais (aplicada de igual maneira às demais), torna compulsória a raspagem de cabelo e barba dos detentos homens.
Os justificadores da administração penitenciária são pautados na higiene e na disciplina. No entanto, os justificadores são falaciosos. O primeiro deles, para a "manutenção da higiene", uma vez que nos estabelecimentos prisionais femininos não há tal obrigação, bem como existem tantos outros meios menos lesivos para conter, por exemplo, piolhos, que tornam desnecessária a medida. O segundo, referente à disciplina, detém traços do militarismo, que presume maior obediência à rotina e adequação ao passo que tarefas como essas são realizadas diariamente.
A administração penitenciária tem totais condições de zelar pela disciplina e ordem do estabelecimento e pela saúde das pessoas presas sem que para isso as submeta a situações humilhantes, práticas estigmatizantes ou, em geral, medidas atentatórias aos direitos fundamentais e que ultrapassam todos os limites legais e éticos do Estado democrático de Direito [3].
O que se nota, contudo, é que a raspagem do cabelo é utilizada como consequência da pena (pena ilícita, cruel e infamante), que retira traços mais característicos das pessoas, anulando a individualidade, fomentando a institucionalização, violando a vida privada, a honra e a imagem da pessoa presa, em uma verdadeira "mortificação do eu" [4].
Pelo visto, até então, o ato de raspar o cabelo (masculino) se mostra descabido. Porém, no caso da mulher transexual, precisamos ir adiante.
Em novembro de 2006, foi elaborado, por especialistas em direito internacional e direitos humanos de inúmeros países, um material referente à proteção da comunidade LGTBQIA+ na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, que resultou em um documento intitulado Princípios de Yogyakarta [5].
Nesse documento, dois princípios nos chamam a atenção para o caso em apreço: os princípios 9 e 10, sendo que o primeiro trata sobre o direito a tratamento humano durante a detenção:
"Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa."
Uma das obrigações do Estado (item "a") é a garantia de que a detenção evite a marginalização das pessoas motivada pela sua orientação sexual ou identidade de gênero, não podendo ser expostas a maus-tratos ou abusos de qualquer natureza e que "e todos os detentos e detentas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero" (item "c").
Além disso o item "g" trata da necessidade implementação de
"[..,] programas de treinamento e conscientização, para o pessoal prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão envolvidas com as instalações prisionais, sobre os padrões internacionais de direitos humanos e princípios de igualdade e não-discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero."
E o segundo, princípio 10, sobre o "direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante":
Toda pessoa tem o direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, inclusive por razões relacionadas à sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Ponto importante neste segundo princípio é referente ao item "c" dada aos Estados que deverão "implantar programas de treinamento e conscientização, para a polícia, o pessoal prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão em posição de perpetrar ou evitar esses atos".
Diante desses princípios fica claro que não há, em um Estado Democrático de Direito, necessidade de discussão sobre tratamento igualitário entre as pessoas, seja qual for a sua orientação sexual ou identidade de gênero, certo? Errado.
Errado, pois, o Supremo Tribunal Federal teve que enfrentar essa questão na ADPF nº 527, de relatoria do ministro Luiz Roberto Barroso [6], que foi motivada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT) a possibilidade de transexuais e travestis com identificação de gênero feminino de optar por cumprir pena em presídio feminino ou masculino, tendo respeitada, em caso de opção por cumprir pena em presídio masculino, a sua segurança.
A decisão foi tomada em ajuste à medida cautelar parcialmente deferida em junho de 2019, ocasião em que o ministro relator reconheceu somente o direito às transexuais femininas de cumprirem pena em presídios femininos.
Diga-se isso, pois nos estabelecimentos prisionais brasileiros as ilegalidades são severas contra às mulheres encarceradas e da população LGBTQIA+. Alguns dados de 2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP [7], e a Resolução Conjunta nº 1 de 2014 [8] já tratavam de medidas de criação de alas especiais para presos da população LGBT de adesão voluntária, onde exerceriam a liberdade de expressão e optar por "uso de roupas ligadas à sua identidade, manutenção do cabelo comprido para travestis e transexuais, visita íntima, acesso a tratamento hormonal, de acordo com a evolução legal e judicial quanto à condição de gênero ou orientação sexual" [9].