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Expoente da diversidade em Fortaleza, o coletivo "As Travestidas" construiu fortes memórias com o público cearense. O grupo abalou as noites da Capital com um mix de artes cênicas, festa, música, dança, dublagens, talk-show e, claro, doses de deboche.
Agora, “As Travestidas” se despedem dos palcos enquanto coletivo. Para marcar esse adeus, os artistas apresentam o “Cabaré das Travestidas” neste domingo, 15, no Cineteatro São Luiz. Sobem aos palcos Silvero Pereira (Gisele Almodóvar), Denis Lacerda (Deydianne Piaf), Patricia Dawson, Yasmin Shirran, Verónica Valenttino, Mulher Barbada, George Santiago (Betha Houston) e Italo Lopes (Karolaynne).
Quinze anos depois, o projeto que surgiu de forma espontânea, sem “idealização específica ou premeditada”, como define o ator e fundador Silvero Pereira, ganhou palcos, ruas e corações dos fãs de Fortaleza e Brasil afora. Impulsionando não somente artistas que o integram, a exemplo de Silvero, mas se retroalimentando da cena artística da Capital.
“Em 2002, havia uma cena de arte transformista muito forte, em especial na boate Divine, e fui me encantando por esse universo ao ponto de querer levar essa experiência para o teatro", relembra o ator. Foi a partir do espetáculo 'Uma Flor de Dama' - a priori, bastante rejeitado pelo público e pela crítica, - que as Travestidas teriam seu embrião na insistência, que se confunde com resistência.
“O espetáculo ‘Uma Flor de Dama’, que teve uma péssima recepção do público e a classe artística muito criticou, mas eu insisti no trabalho até ganhar o Festival de Guaramiranga, como Melhor Ator e receber convites para fora do Estado. Depois disso, decidi criar o Cabaré da Dama, que agregava shows e espetáculos. Assim foram chegando novos integrantes e vimos a necessidade de se consolidar como Coletivo. No princípio, o grupo se chamava Parque de Teatro e, em 2011, mudou para Coletivo Artístico As Travestidas”, explica Silvero.
Com a evolução na popularidade, shows lotados e premiações, o grupo também desafia estereótipos de gênero e sexualidade, promovendo a eclosão de linguagens artísticas. No palco das Travestidas, tudo se confunde, por um motivo simples: nada pretende caber em moldes tradicionais. Em meio a mudanças que acompanham os novos tempos, não faltam bons momentos para lembrar, como destaca a cantora, compositora, atriz e performer, Verónica Valenttino.
“O dia mais inesquecível foi a minha primeira apresentação no porão do Theatro José de Alencar. Nesse dia, tudo deu errado, minha peruca não deu certo, usei um turbante, estava nervosa, era meio improvisado, mas cantei ‘Ne me quitte pas’ e foi uma verdadeira catarse. Quando finalizei a apresentação, fui correndo para o camarim emocionada e me vi no espelho, eu me vi de verdade, eu vi Verónica”, conta a artista.
Transformações
Quinze anos de existência simbolizam um caminho de maturação, a exemplo da despedida da infância e chegada da juventude. Processo semelhante aconteceu com o coletivo “As Travestidas”, que marcou uma era do teatro cearense, não sem constantes reformulações, mudanças na composição e, claro, no fazer artístico.
“Como tudo na vida, há várias coisas que fazíamos e que não faríamos hoje em dia, porque o tempo também nos trouxe maturidade, aprendizado, a sociedade mudou. Hoje, por exemplo, as pessoas cisgênero do grupo jamais interpretariam pessoas trans”, pondera Denis Lacerda, ator e humorista. Responsável por trazer comicidade às apresentações, a partir da drag Deydianne Piaf, ele entende o papel do grupo para os avanços no debate de gênero e destaca aprendizados.
“Tenho consciência de que todos os nossos trabalhos foram importantes para alicerçar o que se debate hoje em dia, o que temos de avanço em termos de gênero e sexualidade. Não me arrependo de nada e não faria nada diferente. Tudo o que é discutido hoje na pauta LGBTQIAP+ foi fruto de erros e acertos, inclusive os nossos”, frisa. Foi neste espaço de experimentação e liberdade, que deu vida a Deydianne Piaf.
“Quando fui convidada a participar do coletivo, não existia um direcionamento sobre como seria a minha drag, não existia uma orientação, tipo ‘você vai ser uma drag caricata’. Mas como eu já vinha da comédia, era da Cia. Cearense de Molecagem, com meu grande mestre da comédia, Carri Costa, a vertente veio naturalmente”, explica Denis.
À época, os espetáculos chamaram atenção de Patrícia Dawson, até então funcionária do Theatro José de Alencar, onde acontecia parte dos ensaios. “Eu sempre ficava de olho nos ensaios, no camarim e aí fomos criando vínculos. Lembro de ter visto o espetáculo ‘Flor de Dama’ no porão do teatro e fiquei acompanhando todas as apresentações até surgir o convite para integrar na produção”, conta ela.
“Fui ficando e entendendo que aquela arte me fascinava, tinha algo artístico e pessoal de descoberta, de ampliar meus conhecimentos, era o desejo de estar junto com elas, de construir junto de estar na vida delas. Era muito além dos palcos”, define Patrícia.
Novos caminhos
“Cabaré das Travestidas”, “Quem tem medo de travesti”, “Bloco das Travestidas”: não foram poucas as iniciativas das “Travestidas”. O tempo em grupo, que agora chega ao fim no último cabaré, marca o fim de um ciclo - e não de um legado, este continua.
“No início não foi fácil. A ficha demorou a cair que nós estávamos, realmente, nos separando artisticamente. Mas hoje consigo entender com mais propriedade que foi a melhor decisão e que isso não apaga a nossa história. Nós conquistamos um lugar importante na cultura do Ceará, somos revolucionárias, então não acredito que esse seja bem um fim, porque estaremos eternizadas”, define Patrícia Dawson, que segue como atriz.
Para ela, o coletivo foi importante por apresentar o que classifica como “arte política”. “A importância do coletivo artisticamente falando foi fazer o tipo de arte que eu acredito, arte como ferramenta política, questionadora e provocadora. Foi com As Travestidas que eu conquistei uma maior projeção, as portas foram abertas para outras linguagens artísticas, inclusive para o cinema”, qualifica Patrícia.
Antes de dar vida aos personagens Lunga, em “Bacurau” (2019) e Zaquieu em “Pantanal” (2022), Silvero Pereira percorreu uma longa caminhada no teatro, televisão e cinema. Nesta trajetória, “As Travestidas” foram fundamentais.
“O Coletivo As Travestidas mudou minha forma de pensar e produzir arte. Foi ao longo de toda sua história que me consolidei como ator, dramaturgo e diretor. Foi também com o Coletivo que fui visto e levado para os projetos de televisão e cinema. Então, apesar de no grupo exercer um papel de direção, de liderança, foi a força coletiva que contribuiu para a minha carreira”, define.
Da mesma forma para Verónica Valenttino. “Na época da minha entrada no grupo, eu me considerava um ator transformista, sem a menor dimensão do que o trabalho do coletivo iria causar na minha vida (...) Hoje, eu percebo o que posso fazer com meu corpo trans e como desaguar isso na minha arte”, finaliza.
Pioneirismo e resistência
“Eu acredito que nós fizemos uma revolução no Ceará e no Brasil e contribuímos para outras trajetórias”, inicia Denis Lacerda, expoente cearense ao unir humor e cultura drag. Ter ciência da influência do que foi desenvolvido até aqui é unanimidade entre artistas do grupo “As Travestidas”.
“Acho que fomos conquistando o público pela irreverência, pela qualidade e pelas ações políticas que sempre foram impressas nos nossos trabalhos. Fomos consideradas as Vedetes do Teatro Cearense ou, como gosto de dizer, ‘VeDrags do Teatro Cearense’”, avalia Silvero Pereira, idealizador do coletivo.
Irreverência que muitas vezes desafiava a sociedade conservadora e outras vezes a provocava. “Existia uma identificação, um carinho do público muito forte. Nós tocamos em assuntos, levantamos debates que não se fazia antes no teatro. Muito se mudou de lá pra cá e muito se mudou também graças a esses trabalhos”, diz o ator.
Para a integrante Verónica Valenttino entrar no coletivo um novo panorama, além do que já conhecia. “Eu cresci em ambiente religioso, dentro da igreja evangélica e o que trago para a arte é o respeito ao palco, o tratamento divino que eu dou ao palco. Nossos corpos são divinos, a arte é divina e o palco é a manifestação de louvor, de exaltação de nossa própria existência”, diz. Ao mesmo tempo, um convite à ressignificação.
“Então eu me coloco como canal, como instrumento desse altar, mas o meu louvor não é para um Deus que disseram que deveria ser o meu. Eu louvo a minha ‘transcestralidade’, a minha ancestralidade que eu insisto em conhecer e reconhecer nesse país que ainda mata tantas de nós (LGBTQIA+)”, completa Valenttino .
Cabaré das Travestidas - A despedida
Quando: domingo, 15, às 18 horas
Onde: Cineteatro São Luiz (R. Major Facundo, 500 - Centro)
Quanto: R$50 (inteira) e R$25 (meia-entrada) - com limitação de 40% para meia-entrada - vendas online e bilheteria física do cineteatro
Mais informações: www.cineteatrosaoluiz.com.br
Assista "As Travestidas" no Happy Hour Vida&Arte
https://www.youtube.com/watch?v=lglOUmA2DUs
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