
Duas irms e um mistrio. Por que uma delas desapareceu? Eis o ponto de partida de “Nada vai acontecer com voc”, mais recente romance de Simone Campos. Mas o livro vai alm do suspense bem-amarrado: com a construo de personagens femininas marcantes, a exemplo do que conseguiu no romance anterior, “A vez de morrer” (2014), Simone traa tambm retratos de uma gerao desiludida pelas frustraes, pressionada pelos padres de beleza e com a sua prpria “cota de pesadelos”, como define uma das irms, Lucinda. Na tentativa de encontrar Viviana, ela acaba ingressando em outro mundo, movido a sexo, angstia e narcisismo. E se deparando com o confronto condio feminina contempornea por meio de tentativas de subjugao fsica e psicolgica. “Nada vai acontecer com voc” , portanto, um tenso romance de descobertas: para a protagonista e para o leitor.
Nascida em 1983, no Rio de Janeiro, Simone Campos atualmente mora nos Estados Unidos. Alm de autora dos livros “No shopping” (2000), “A feia noite” (2006), ela escreve roteiros para produes audiovisuais e faz tradues. Leia, a seguir, a entrevista que a autora concedeu por e-mail ao Pensar.
Como surge “Nada vai acontecer com voc”?
Eu tinha a ideia de um mistrio ou policial envolvendo duas irms, Viviana e Lucinda. Elas sempre foram o centro da histria, e as cenas iniciais que escrevi foram com elas, explorando suas vidas e relacionamentos desde a infncia. Queria muito falar da presso esttica, do estrago que ver determinados corpos – magros, brancos – como padro nico na mdia faz na cabea das meninas, e da rivalidade que isso cria.
H, no livro, uma sucesso de descobertas da protagonista. Ao mesmo tempo, o ritmo das aes acelera a cada captulo. O que nasceu primeiro? Os personagens ou a trama? Quando voc percebeu que poderia chamar o novo trabalho de um “suspense”?
Quando eu j sabia o criminoso e tinha a soluo do mistrio, vi que a histria estava destoando do gnero proposto (policial). Vi que se enquadrava mais em suspense, porque o lado psicolgico era fundamental. Mas no s a psiqu do criminoso, das investigadoras e da vtima tambm. A inte- rao entre essas personalidades e histrias de vida que faz o livro, destrincha o mistrio e leva soluo.
“O presente complexo, tem muita informao”, voc escreve no incio em um dos captulos. Como se comporta a imaginao de um escritor em um mundo com, cada vez mais, “muita informao”?
Eu experimento e incorporo as tecnologias novas, e aloco um tempo para pensar e planejar sobre como quero usar meu tempo. Com isso, resisto a me tornar massa de manobra, a consumir demais ou de qualquer jeito, e at a parar de escrever por usar meu tempo todo com distrao. Esse metaplanejamento essencial para levar uma vida me- lhor, mas tambm para escrever de um jeito que faa sentido para o leitor de hoje. Estou longe de ser infalvel nesses princpios, mas procuro me esforar quando tenho energia, porque os frutos so timos. Tambm estudei feminismo interseccional, negro e decolonial para poder compor me- lhor minhas personagens. Mas fao questo de no “esfregar na cara” do leitor minha pesquisa. Se fizer isso, o livro fica chato e panfletrio. Alm disso, pesquisa com cara de pesquisa se chama dissertao ou tese (e j escrevi as minhas; estou bem por uns anos).
Lucinda afirma que tem “uma cota de pesadelos suprida pelos prximos anos”. E, como escritora brasileira, qual a sua cota de pesadelos?
Hoje mesmo tive um pesadelo em que era mordida por um zumbi, e havia um antdoto disponvel, mas por algum motivo besta no me davam a tempo. Acho que esse sonho tinha algo a ver com a gesto do governo brasileiro das vacinas para covid... Mas a gesto de dinheiro pblico, que foi violentamente tirado da educao, literatura e audiovisual brasileiros, no fica atrs. Como se isso no fosse precisamente o futuro do pas.
As protagonistas de seus romances mais recentes “A vez de morrer” e “Nada vai acontecer com voc” so mulheres jovens e fortes, independentes, mas que precisam esclarecer e resolver questes familiares e, ao tomar a rdea das aes, promovem acertos de contas com o prprio passado. Como foram construdas estas personagens e quais as semelhanas e diferenas entre elas?
A Izabel de “A vez de morrer” branca; Viviana e Lucinda no so. Izabel e Viviana so mulheres bissexuais consideradas “promscuas”, e so julgadas pela sociedade por isso. Lucinda uma mulher gorda, hoje dona da prpria vida e que sabe ser sensual, mas que guarda cicatrizes por ter crescido bombardeada com imagens de mulheres brancas e magras, e ainda se ver em competio com a irm, uma modelo. A construo do mistrio da Izabel mais existencial e gradual – ela querendo se encontrar – enquanto a Lucinda tem que desvendar um mistrio urgente: o paradeiro da irm desaparecida. De alguma forma, todas foram inspiradas em mim e/ou em mulheres que eu admiro, desde amigas a familiares. Gosto de misturar os traos criando personagens nicos.
Izabel, a protagonista de “A vez de morrer”, mora em Toronto. O que mudou na sua viso ao passar a morar fora do Brasil e como essa mudana tem se refletido em sua criao?
Tenho tido que trabalhar pra manter a lngua em dia, mesmo casada com um brasileiro. Afinal, meu instrumento de trabalho. Tenho lido livros em portugus e assistido a novelas brasileiras pra no perder a prtica. Sobre os EUA, chocante ver tanta pobreza numa sociedade to afluente. Mostra que redistribuio de renda e garantia de direitos bsicos para os mais pobres no tm nada a ver com “falta de dinheiro”, como alguns ainda podem pensar morando no Brasil.
Autoras tm se destacado, nos ltimos anos, com thrillers que se tornaram best-sellers, a exemplo dos escritos por Gillian Flynn e Paula Hawkins (que voc traduziu). Quais as principais diferenas que voc observa entre os livros de suspense psicolgico escritos por mulheres para os que so criados por homens? E por que esses livros tm feito tanto sucesso?
Esteretipos como a mulher fatal (que move a histria, mas est condenada) nos policiais e a final girl (a pura, que digna de resgatar ou ser resgatada) dos filmes de terror tm sido reimaginados por autoras. As pessoas esto meio cansadas de histrias com homens no centro, sejam eles heris ou viles, quando muitas vezes as mulheres volta so (ou poderiam ser, caso desenvolvidas) bem mais interessantes e complexas. E, especialmente aps a era #metoo, esses mitos de homem como prncipe encantado ou caador protetor tambm tm perdido popularidade entre as mulheres.
Mas ainda falta alguma coisa nesses thrillers pra mim. sempre o desaparecimento e a morte de uma mulher branca que detona a investigao, ainda que por outra mulher branca. Eu queria de- tonar esse esteretipo de que s o desaparecimento da mulher branca digno de ser investigado. (E isso est presente tambm na vida real: o desaparecimento recente de uma mulher branca aqui nos EUA, a Gabby Petito, mereceu grande cobertura da imprensa e ateno da polcia, enquanto os desaparecimentos de mulheres indgenas e negras quase no merecem cobertura e investigao; muitas vezes no so resolvidos.)
Como tem sido a experincia de traduo? difcil, para um autor, encontrar a voz de outro autor?
Acho que por ser autora fica mais fcil. Agora tenho feito tradues portugus-ingls tambm, j que estou mais em contato com a lngua. Recentemente, traduzi um pedao do “Elvis & Madona”, de Luiz Biajoni, para o ingls. um romance que se passa em Copacabana, e teve seus desafios, mas me diverti transpondo conversa entre criminosos, gria travesti e sonhos erticos para o ingls. O cenrio tambm teve seus desafios: dei explicaes condensadas sobre “calada portuguesa” e a geografia carioca.
Voc revela, em seu site, o diagnstico que recebeu de “autismo leve”. Como isso a impactou e o que levou dessa descoberta para a sua literatura?
Na verdade, essa descoberta veio da minha lite- ratura. Com a pesquisa detalhada sobre autismo em mulheres, descobri como ele subdiagnosticado e mascarado, mas causa enormes problemas para elas, e percebi que me encaixava. Como o diagnstico em adulto de qualquer gnero difcil, fui atrs de uma especialista e ela, aps meses de sesses, confirmou que eu era autista com necessidade de suporte leve. O que para mim foi um enorme alvio: finalmente, entendia o que estava acontecendo. Meus hiperfocos, minhas sensibilidades sensoriais, a incompreenso de certas situaes sociais e piadas, e tambm o fato de eu travar em certas situaes, a ponto de s vezes no conseguir articular uma palavra.
Trecho
“Aos poucos, Viviana aprendeu a se passar por normal em seu meio, a parecer mais uma entre as amigas branquinhas. Tanto quanto dava, pelo menos. A atuao se incorporou ao seu jeito de ser (...). Mas Lucinda conhecia a irm de antes, de bem antes. E no a julgava – ou melhor, julgava, mas com informao suficiente para absolv-la. Mesmo na fase de sucesso como modelo, Vivi sempre mantivera um mundo secreto em que ainda podia ser criana e – talvez mais importante – cultivar hobbies imaginativos. Primeiro, foi a paixo por super-heris, especialmente super-heronas. Com doze anos, era freguesa constante de certas bancas de jornais que vendiam gibis importados. Depois, passou a baixar tudo pela internet. No comentava nada disso com seus colegas de escola. Se eles fossem casa delas, Viviana dizia que os livros e gibis visveis eram da irm mais velha, e Lucinda deixava passar, sentindo-se compreensiva e abnegada. Mais tarde, Vivi teve a fase de ver anime legendado por fs e de colecionar mangs, chegando a fazer aulas particulares de japons com um professor niteroiense. Com o tempo, seu gosto se tornou mais alternativo e refinado: clssicos da literatura, filmes cabea, discos de vinil. Em paralelo, a vida de modelo, a imagem de garota frvola. No era fachada: as duas Vivis eram reais.”

‘‘Nada vai acontecer com voc”
.Simone Campos
.Companhia das Letras
.192 pginas
.R$ 59,90