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No último dia 11 de fevereiro, o Ceará amanheceu com uma notícia de mais uma morte de uma travesti: Sofia, de 22 anos, havia sido encontrada morta em um terreno baldio localizado no bairro Bom Jardim. Ao lado do seu corpo, pedras com marcas de sangue denunciavam qual havia sido a arma utilizada no crime. Quatro dias depois, familiares e ativistas LGBTQIA+ estavam em manifestação em frente à sede da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) cobrando justiça.
Sofia foi morta no dia 11 de fevereiro passado (Foto: reprodução/Vídeo)
Não adiantou: o inquérito policial chegou ao fim sem elucidar quem foi ou foram os responsáveis pelo homicídio. No último dia 1º de julho, o Ministério Público Estadual (MPCE) pediu o arquivamento do caso, o que ainda aguarda a decisão da Justiça.
A falta de responsabilização para o crime que vitimou Sofia não é exceção. Levantamento feito por O POVO aponta que, de 2017 — ano marcado no movimento LGBTQIA+ cearense pela morte de Dandara dos Santos — a 2021, 65 pessoas trans foram mortas no Estado, sendo 63 mulheres trans ou travestis e dois homens trans.
Foto: O POVO
Manchete do O POVO em 12 de fevereiro de 2022 destaca o assassinato de Sofia
Desses casos, em apenas três houve condenação judicial. Um deles é o emblemático caso da travesti Dandara dos Santos, morta após ser espancada e baleada no Bom Jardim em 2017. Há 11 casos em que denúncia foi ofertada pelo Ministério Público Estadual (MPCE) e com ação penal está em andamento; dois casos em que acusados foram pronunciados pela Justiça e aguardam julgamento, além de três casos em que há acusados, mas, como os processos estão em segredo de justiça, não foi possível saber status atual.
Entretanto, a impunidade é ampla maioria. Vinte e um casos estão em andamento ainda em fase de investigação e sem suspeitos identificados. Há outros 16 casos arquivados sem punições, seja porque não foi possível identificar suspeitos (13), seja pela morte do assassino apontado (3). Há ainda um caso em que os acusados foram absolvidos pela Justiça.
Neste ano, a situação é ainda pior. Em nenhum dos 10 casos computados pelo O POVO houve prisão até o momento. Foram quatro crimes ocorridos em Fortaleza, dois em Caucaia, um em Pacatuba (ambos municípios da Região Metropolitana de Fortaleza), um em Barreira (Maciço de Baturité), um em Forquilha e um em Coreaú (ambos na Região Norte).
No caso de Sofia, a Polícia Civil não conseguiu localizar testemunhas do crime. Uma das pessoas ouvidas no inquérito chegou a afirmar que ouviu "comentários" de que os autores do crime haviam sido duas pessoas, mas não foram informados os nomes desses possíveis suspeitos. Também não foram encontradas câmeras de segurança que tivessem flagrado o crime ou suspeitos fugindo.
Foto: O POVO
Manchete do O POVO de 4 de março de 2017 repercute o assassinato de Dandara
“Neste contexto, entendendo o Ministério Público que as diligências necessárias para o esclarecimento do fato criminoso em tela foram efetivamente empreendidas, muito embora sem o mais satisfatório resultado que seria a identificação do(s) seu(s) autor(es), outra alternativa não resta senão pleitear o arquivamento do presente procedimento investigatório”, manifestou-se a promotora Alice Iracema.
O POVO questionou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) sobre o trabalho desenvolvido pelo Observatório Cearense dos Crimes Correlatos por LGBTQIAPNfobias, criado em fevereiro.
A pasta informou que, neste mês, deve ocorrer a última reunião do ano para articular detalhes relacionados à apresentação de um protocolo humanizado para as abordagens do Comando para Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac), da Polícia Militar do Ceará (PMCE) e para os atendimentos nas delegacias da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE) e para os locais de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs), "monitorados periodicamente pelo observatório".
O Observatório, formado por integrantes das forças de segurança vinculadas à SSPDS, tem entre os seus objetivos “monitorar os crimes cometidos contra a população LGBTQIAPN+” e “dialogar com a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a População LGBT e demais entidades em movimentos sociais de luta pelos direitos humanos da população LGBTQIAPN+”, conforme a portaria que a criou.
A nota da SSPDS ainda afirma que, à exceção do que investigava a morte de Sofia, todos os outros inquéritos seguem em andamento. Em 17 de novembro último, também foi arquivado por falta de provas um inquérito que investigava o possível assassinato de uma travesti encontrada morta em um estacionamento do Centro em abril. Ela foi identificada apenas pelo apelido de Baratinha e pelo nome de batismo, que O POVO opta por não revelar em respeito ao nome social dela.
Cinco anos depois, homem vira réu acusado de matar travesti por espancamento na José Bastos
Outro caso marcante de violência contra pessoas trans no Ceará teve uma importante movimentação neste ano, cinco anos após o crime. Um homem virou réu, em setembro último, acusado do assassinato da travesti Hérica Izidório, encontrada morta com marcas de espancamento debaixo de uma passarela da avenina José Bastos, no bairro Rodolfo Teófilo.
O acusado trata-se de Hugo Leonardo Façanha Batista, de 40 anos. Denúncia do Ministério Público Estadual (MPCE) narra que ele e outros três homens ainda não identificados agrediram a vítima por volta das 5h40min, do dia 12 de fevereiro de 2017. Encontrada por moradores da região, a vítima foi levada ao Instituto Dr. José Frota (IJF), onde permaneceu em coma por dois meses antes de falecer.
Foto: Nadine Shaabana/Unsplash
Maioria dos crimes contra travestis ficam impunes no Ceará
Na denúncia, a promotora Alice Iracema Melo Aragão afirma não ter sido possível “aferir com precisão” as motivações do crime. Entretanto, em depoimento, testemunhas afirmaram que Hugo Leonardo havia dito que “mataria qualquer travesti que encontrasse naquela região”. Outra hipótese levantada pela investigação para a motivação do crime foram dívidas que Hérica teria.
“Os autos revelaram que o acusado, à época dos fatos, era pessoa bastante temida na região por ser apontado como autor de vários homicídios e ser envolvido com tráfico de drogas, inclusive ameaçando de morte eventuais devedores”, afirmou a promotora.
Hugo Leonardo negou, em depoimento, ter praticado o crime. Para a promotora, porém, “a comprovação da autoria deriva dos vastos elementos informativos testemunhais colhidos pela autoridade policial”.
Foto: Lena Balk/Unsplash
Impunidade é marca dos crimes contra travestis no Ceará
A 1ª Vara do Júri recebeu a denúncia em 29 de setembro. Hugo havia sido preso em março de 2019 pelo crime, mas teve a prisão relaxada em abril de 2020 após a Justiça apontar excesso de prazo na formulação da acusação.
Entretanto, ele permaneceu preso por ser acusado de um outro homicídio por espancamento, também ocorrido na avenida José Bastos e que teve como vítima Francisco Roberto dos Santos. Em 2020, ele foi condenado a 20 anos de prisão por este crime.
Ativista cobra políticas públicas contra violência contra população trans e travesti
A presidenta da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Andrea Rossati, diz ser “desconcertante” viver "no Estado que mais mata trans e onde mais se viola direitos humanos da comunidade LGBTQIA+ no Nordeste". Uma das razões que mais a desanima é o fato de várias reuniões, audiências públicas e manifestações terem sido feitas, mas demandas históricas do movimento seguem sem ser postas em prática.
Andrea critica o Observatório Cearense dos Crimes Correlatos por LGBTQIAPNfobias, que, como destaca, não conta com a participação de representantes da sociedade civil. “Eu, particularmente, não sei o que esse observatório está fazendo”, diz. "Como você vai criar uma coisa para mim se você nem me escutou?". Ela também cobra celeridade para a criação do protocolo anunciado pela SSPDS para o trato de crimes de intolerância.
Foto: Alexander Grey/Unsplash
Militantes questionam papel de Observatório que coleta dados sobre violência contra travestis no Estado
Outra medida que também é defendida pela Atrac é a inclusão de homicídios contra trans no programa Tempo de Justiça, iniciativa que contempla vários órgãos que atuam na persecução penal e que visa priorizar determinados processos envolvendo casos de crimes contra a vida, a exemplo daqueles em que há autoria elucidada. A associação esteve reunida em junho com a presidente do Tribunal de Justiça do Estado, a desembargadora Maria Nailde Pinheiro Nogueira, para tratar desta pauta.
Iniciativas como essa poderia evitar a falta de elucidação ou mesmo arquivamentos de investigações, como o caso que vitimou Sofia. "Eu acho que foi um arquivamento muito rápido. Eu acho que poderia ter esperado mais um pouco, deveria ter sido investigado mais um pouco", afirma Andrea.
Foto: Kyle/Unsplash
Delegacia especializada em reprimir crimes que envolvem racismo e homofobia foi criada em dezembro de 2022
“O que nos compete, o que nos cabe fazer, nós estamos fazendo diariamente. Estamos dialogando com a Defensoria Pública, através do Núcleo de Direitos Humanos, junto com os movimentos sociais, para exigir dos órgãos de segurança pública uma resposta sobre essas investigações”.
A entrevista com Andrea foi feita antes da aprovação, por parte da Assembleia Legislativa, da criação da Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou de Orientação Sexual (Decrim).
A votação ocorreu em 1º de dezembro último, quase cinco meses após a Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia Legislativa aprovar o projeto de lei. Já havia, até mesmo, prédio e efetivo para a unidade.
Para Andrea, a demorava sinalizava falta de prioridade ao tema. “É inaceitável não se ter uma delegacia funcionando que trabalhe, especificamente, no enfrentamento às discriminações, à homofobia, à transfobia, ao racismo, à lesbofobia”, desabafa.
Confira levantamento de O POVO sobre assassinatos de pessoas trans e travestis no Estado desde 2017, ano marcado pelo caso do assassinato da travesti Dandara dos Santos, morta após ser espancada e baleada no bairro Bom Jardim
Relembre os casos de travestis e mulheres trans assassinadas neste ano no Ceará
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