Trans e travestis vivem sem renda e CLT no Pará, aponta estudo

4 months ago 168
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A pesquisa revela que mais de 60% das pessoas trans e travestis vivem com até um salário mínimo mensal (Composição: Paulo Dutra/CENARIUM)

BELÉM (PA) – No Pará, a população trans, travesti e não-binária vive à margem dos direitos trabalhistas, relegada à informalidade, à violência e à prostituição compulsória. Essa é a realidade escancarada pelo estudo “Trabalho, Emprego e Renda Trans no Pará”, conduzido pela Universidade Federal do Pará (UFPA) entre 2022 e 2024. O levantamento, que ouviu 269 pessoas em todas as regiões do Estado, foi coordenado pelo Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, com apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A pesquisa revela que mais de 60% das pessoas trans e travestis vivem com até um salário mínimo por mês. O desemprego é estrutural: quase metade das travestis (49,2%) está fora do mercado de trabalho há mais de cinco anos, e menos de 10% têm carteira assinada. A informalidade e a prostituição — muitas vezes como única alternativa de sobrevivência — são a regra.

“Esse estudo mostra uma exclusão sistemática sustentada por transfobia, racismo e desigualdade de classe”, afirma o advogado e professor da UFPA Davi Haydee Almeida Lopes, que integrou o núcleo estruturante da pesquisa. “É um retrato do vazio jurídico em que vivemos. Sem leis específicas ou efetiva aplicação das que existem, a violência e a discriminação continuam impunes”, afirma.

Prostituição compulsória

Um dos dados mais alarmantes do relatório aponta que 61% das travestis e 58% das mulheres trans já exerceram trabalho sexual como única fonte de renda. A pesquisa chama isso de “prostituição compulsória” — não por escolha, mas pela ausência de alternativas, impulsionada pela rejeição no mercado de trabalho e pela hipersexualização dos corpos trans.

Estudo “Trabalho, Emprego e Renda Trans no Pará” (Reprodução)

A violência é um componente constante no cotidiano laboral dessa população. Mais de 90% das pessoas trans relataram discriminação por identidade de gênero no trabalho. Entre as travestis, 35% afirmaram ter sofrido agressões físicas e verbais, enquanto 57% foram vítimas de violência verbal. Os principais agressores? Clientes e colegas de trabalho.

Além disso, o respeito à identidade de gênero é escasso: só 43% das travestis têm seus pronomes respeitados no trabalho. Entre pessoas não-binárias, o dado é ainda mais grave — 23% afirmam que nunca são tratadas corretamente.

Cidadania negada

A exclusão também atinge o acesso à cidadania básica. Apenas 17,9% das pessoas entrevistadas realizaram algum tipo de cirurgia de afirmação de gênero. A retificação do nome civil ainda é uma barreira gigantesca: 90% das pessoas não-binárias e 61% das travestis não concluíram o processo.

Mesmo entre aquelas que acessam serviços de saúde, o atendimento especializado é escasso. O estudo aponta dificuldades graves para consultas psicológicas, hormonização e cirurgias de transição via Sistema Único de Saúde (SUS). Mais de 80% dos entrevistados não recebem nenhum tipo de benefício social.

Caminhos possíveis

Davi Haydee destaca que medidas como cotas no ensino superior e incentivos fiscais têm potencial de impacto imediato. “As cotas atacam a raiz do problema: o acesso à educação. Já os incentivos fiscais ajudam quem está fora da escola a entrar no mercado”, explica.

Advogado Davi Haydee Almeida Lopes, professor da UFPA e integrante do núcleo estruturante da pesquisa (Reprodução/Arquivo pessoal)

Para ele, o Judiciário e o Ministério Público precisam se educar sobre as múltiplas camadas de discriminação enfrentadas por essa população. “A violência começa na infância e atravessa toda a vida. Reconhecer isso é o primeiro passo para garantir direitos. O desconhecimento não pode continuar sendo uma desculpa para negar cidadania”, conclui.

O relatório da UFPA apresenta propostas para reverter o cenário de exclusão. Entre elas estão:

  • Cotas em universidades e instituições públicas;
  • Auxílio estudantil para pessoas trans;
  • Incentivos fiscais para empresas que contratam pessoas trans;
  • Criação de centros de apoio social e econômico;
  • Observatórios de políticas públicas voltados à população trans;
  • Inclusão da identidade de gênero nos bancos de dados oficiais;
  • Campanhas contínuas de combate à transfobia.
Transfobia

Para a professora e presidente da Associação Vozes da Diversidade, com sede em Santarém (PA), Adiara Pereira, a principal barreira enfrentada pela população trans no Pará é a transfobia institucionalizada. Ela descreve a exclusão como uma política não declarada, mas sistematicamente praticada. “A pior barreira é a transfobia disfarçada de desculpa: ‘não tem vaga’. Muitas vezes, a pessoa trans tem formação, está capacitada — como é o meu caso, sou professora com diploma reconhecido pelo MEC —, mas as oportunidades simplesmente não chegam. É um bloqueio silencioso”, destaca.

Adiara relata que, mesmo sendo uma liderança atuante e participando de audiências com o Ministério Público, jamais foi chamada para dialogar com o executivo municipal de Santarém.

“Na campanha, o prefeito chamou todos os coletivos. Depois da eleição, ninguém da comunidade LGBT foi convidado a dialogar. Já tentei contato com o vereador gay da cidade, mas ele nunca me procurou. Está no segundo mandato. Que representatividade é essa?”, questiona.

Adiara Pereira, professora e presidente da Associação Vozes da Diversidade (Reprodução/Arquivo pessoal)

Ela também critica o uso da religião por gestores como justificativa para o preconceito: “Dizem que não têm preconceito, mas não criam oportunidades. Um gestor deve agir como gestor, não como missionário. Política pública não se faz com pensamento cis para a população LGBT. É preciso escutar e dialogar com os movimentos”.

Adiara defende a criação de espaços de escuta e decisão ocupados por pessoas trans dentro das instituições públicas e privadas. “É preciso parar de usar datas comemorativas como maquiagem. O combate à LGBTfobia tem que ser diário. O preconceito nasce em casa e se espalha na escola, no trabalho, nas instituições. Só vai mudar quando ocupamos esses espaços com políticas feitas por e para nós”, conclui.

Leia mais: Vereador bolsonarista quer proibir menores em eventos LGBTQIAPN+ em Belém
Editado por Adrisa De Góes

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