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Era para ser mais um passo em direção ao corpo sonhado. No dia 23 de março, Karoline Vinhas Valesques, uma travesti de 56 anos, foi até uma casa em Capão da Canoa (RS) para realizar a aplicação de silicone industrial. Horas depois, seu corpo não resistiu às complicações. Ela morreu sozinha — como tantas outras antes dela.
A prática, apesar de proibida e perigosa, ainda é comum entre mulheres trans e travestis no Brasil. Muitas vezes, aparece como a única opção acessível para modificar o corpo de forma rápida. Um estudo realizado no estado de São Paulo revelou que 49% das mulheres trans e travestis entrevistadas já utilizaram silicone industrial e cerca de 43% delas relataram complicações graves após o uso. Já o Dossiê Nacional de Assassinatos de Pessoas Trans no Brasil, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), aponta que, em 2022, pelo menos três mortes foram diretamente associadas à aplicação desse material clandestino.
Os dados não apresentam um panorama completo. A subnotificação é alta, já que muitas das complicações decorrentes do uso de silicone industrial não são registradas oficialmente, seja por medo, vergonha, ou falta de atendimento médico que compreenda as particularidades da saúde trans. O Humanista foi atrás de explicações para o problema.
O caminho até a “bombadeira”
Jessika Valenssa, de 33 anos, é natural de Cachoeira do Sul (RS) e começou sua transição de gênero aos 15 anos. Aos 19, ela decidiu aplicar silicone industrial. Hoje, mais de uma década depois, carrega as marcas e os riscos do procedimento. “Naquela época, se tu não tinhas silicone, tu não eras travesti”, resume Jessika, referindo-se à pressão estética e social sofrida dentro e fora da comunidade
“É sempre uma indicação, alguém que já fez com ela, que passou o número. Vê o corpo de uma, pergunta com quem fez, e era assim. A minha bombadeira me levava para a casa dela, na Restinga. Tinha uma maca num quarto”, relembra.
O procedimento é realizado sem qualquer supervisão médica. É aplicada uma anestesia local do mesmo tipo usada em consultórios odontológicos e, com uma agulha de injeção para cavalos, o silicone é injetado diretamente no corpo. O furo é então fechado com cola instantânea e um pedaço de papelão. Jessika ficou cinco dias de repouso, deitada de bruços. Em outros casos, o período de recuperação pode chegar a 15 dias.
Apesar dos riscos, ela compreende porque muitas ainda optam pelo método que vai para além do baixo custo do procedimento: “O silicone dá pra moldar o quadril, tirar aquele formato do corpo masculino e dar uma forma mais feminina. A prótese deixa a bunda para trás, mas o quadril continua reto.”
O que é o silicone industrial?
O silicone industrial líquido é um tipo de polímero sintético à base de siloxano, desenvolvido para vedar peças automotivas, lubrificar máquinas e impermeabilizar superfícies. Não é biocompatível, ou seja, não deveria ser inserido no corpo humano. Diferente do silicone médico, que é encapsulado e aprovado para uso estético, o industrial se infiltra nos tecidos, podendo migrar para outras partes do corpo e causar inflamações, necroses e até mesmo levar à morte por embolia pulmonar, caso atinja a corrente sanguínea.
Maria Eduarda Krutzmann, biomédica estética e mestre em toxicologia, atua há cinco anos com pacientes trans em sua clínica, onde é comum receber mulheres trans e travestis com produtos aplicados clandestinamente. “Quando eu as questiono sobre o que foi usado, muitas vezes não sabem me dizer. Já encontrei de tudo: silicone, água, soro, polimetilmetacrilato (acrílico industrial) …”
Krutzmann relata casos impactantes, como o de uma paciente que, após aplicar silicone no bumbum, teve que usar uma espécie de torniquete nas coxas nas primeiras semanas: “Quando ela retirou o torniquete, o produto escorreu pelas pernas. Até hoje, ela está um pouco inchada na perna toda.”
Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) ofereça alguns procedimentos de afirmação de gênero — como hormonização, cirurgias de redesignação sexual e, em casos específicos, a colocação de próteses — o acesso é limitado. Os centros especializados são poucos e concentrados nas capitais. As filas são longas e os protocolos exigem tempo, exames e acompanhamento psicológico, o que muitas vezes não corresponde à urgência vivida por essas mulheres.
“Na prática, nunca vi alguém conseguir silicone pelo SUS. O que existe é cirurgia para reconstrução de mama em caso de câncer”, completa Krutzmann.
Uma bomba-relógio no corpo
Nesse cenário, o silicone industrial surge como a única alternativa visível e acessível. A urgência de modificar o corpo para garantir a passabilidade, – a capacidade de uma pessoa ser reconhecida como pertencente a um grupo ou categoria identitária diferente da sua. Neste caso, se passar como uma pessoa cisgenero – segurança, trabalho e dignidade empurra essas mulheres para caminhos arriscados.
Além das barreiras burocráticas, existe o preconceito embutido nos próprios serviços de saúde. Muitas pessoas trans relatam constrangimento em consultas, uso incorreto do nome social, ausência de preparo técnico para lidar com seus corpos e demandas específicas. Para quem já enfrenta marginalização social e econômica, procurar atendimento se torna um fardo.
Apesar de não ter tido complicações imediatas, Jessika sabe que vive com uma bomba-relógio. “Com o tempo a gente sente que ele – o silicone – se movimentou no corpo, deu uma descida do bumbum pras pernas. Pode ser que um dia dê problema, pode ser que não. Vai de cada organismo”, comenta.
A história ganha contornos ainda mais alarmantes quando se descobre que a mesma bombadeira que aplicou o silicone em Jessika, anos atrás, é a responsável pelo procedimento que levou à morte de Karoline — e desde então, está foragida da polícia.
Hoje, Jessika diz que gosta do corpo que tem, mas jamais recomendaria a outras meninas que passassem pelo mesmo. “Foi uma escolha perigosa, que poderia ter terminado mal. Eu tive sorte”, afirma.