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Os agrupamentos sociais, seus comportamentos e mecanismos de ataque/defesa são bastante previsíveis. Constantemente escrevo aqui sobre essas estruturas, buscando destrinchar suas lógicas estabelecidas em diversas situações e em variados contextos. O Big Brother Brasil — um experimento social em formato de jogo televisionado e, não nos esqueçamos disso, regido pela maior emissora de televisão brasileira — não nos apresentaria algo muito diferente do que já assistimos na nossa sociedade em geral, talvez apenas de uma forma mais latente e proposital, em que somos convidades a observar e acompanhar esse micro-organismo social.
Passado um mês de programa já colecionamos uma gama de situações que nos cercam no cotidiano. O racismo e a transfobia, estes que muitos ainda insistem em negar, estão estampados em diversas atitudes dos Brothers e Sisters da casa e, assim como aqui fora, podemos acompanhar tanto os apaziguamentos destas atitudes quanto as estratégias de ataque e defesa dos/das participantes desta edição.
Natália, mulher cisgênera, negra que possui vitiligo — nitidamente um corpo não normativo no programa — vem sendo vítima de práticas racistas constantemente. Esta semana pudemos acompanhar a expulsão da jogadora Maria por agredi-la com um balde durante um "jogo da discórdia", porém esta punição só aconteceu devido ao fato de que agressões físicas são proibidas na casa. Quando uma participante imitou um macaco para fazer chacota de Natália, por exemplo, nada aconteceu. Diversas outras formas de racismo "velado", recreativo ou qualquer outra atitude que um corpo preto reconhece muito bem como fruto dessa estrutura discriminatória foram assistidas como "normais", sendo encaradas como questões pessoais entre os jogadores ou até mesmo não foram levadas em consideração como algo alarmante.
Em outra instância, Lina — Linn da Quebrada — que é uma travesti negra, assim que chegou ao programa já começou a sofrer transfobia, passou a ter sua identidade de gênero desrespeitada pelos participantes do programa e também foi alvo de "brincadeiras" violentas com ares de mero equívoco. A presença e permanência de Lina no jogo, além de ser uma raridade dado que é apenas a segunda travesti a entrar na casa em vinte anos de programa, vem evidenciando como a sociedade lida com as nossas corpas diariamente aqui fora.
Uma das situações que mais me chamaram a atenção nesse sentido foi o fato de que em uma festa na semana passada houve registros que evidenciaram um possível interesse de Paulo André e de Pedro Scooby pela artista. Nada que eles tenham investido — coisa que aqui fora sabemos bem como acontece — porém, não foi essa demonstração de desejo que me chamou a atenção, mas o fato de que ambos votaram na mesma no dia seguinte para ir ao paredão.
Por mais que os dois pudessem ter outros motivos mais conscientes para votarem nela, essa situação se mostrou uma repetição muito nítida da relação dos homens cisgêneros com uma corpa travesti. Eu desejo e em seguida eu elimino... o que aqui fora se torna assassinato, abandono, desafeto, no programa foi demonstrado em voto para eliminar, para acabar com a convivência e, portanto, não suscitar novamente este desejo que os incomoda - ao menos não dentro do programa e em rede nacional.
Lina vem mostrando a cada dia ser a participante mais sensata do programa. Ela não omite suas opiniões, não julga deliberadamente e nem mesmo pratica estratégias de manipulação. Lina simplesmente nos apresenta aquilo que aqui fora muito provavelmente a guia — sua busca por compreender as relações humanas, a si mesma e estabelecer mecanismos de cuidado e de defesa, seja para si ou para aqueles(as) que andam ao seu lado. E é nesse sentido que a amizade de Lina, Natália e Jessi se torna um trunfo dessa temporada.
Três mulheres negras que compreenderam que juntas conseguiriam se cuidar mutuamente para chegar até o final do programa não somente pelo prêmio, mas com seus psicológicos e emocionais menos lesados do que provavelmente chegariam se não tivessem umas às outras. E essa amizade não vem de uma estratégia do jogo Big Brother Brasil, mas do jogo da vida. Quando Natália acolheu Lina na segunda semana após o jogo da discórdia pelo fato dela não ter sido colocada no pódio de ninguém, isso já estava nítido. Agora, quando Lina acolhe a amiga após ser extremamente violentada pela maioria da casa no mesmo jogo, é a confirmação de que ninguém além delas mesmas seria capaz de promover tal acolhimento ou de compreender tão profundamente a dor da outra sem precisar explicar em palavras.
A vivência as aproxima. A cor da pele as aproxima. A posição de ambas dentro das estruturas de poder e opressão social faz com que elas se reconheçam enquanto semelhantes, e isso ao mesmo tempo é exatamente o que as torna mais fortes. Elas estão juntas, e espero que isso permaneça em constante aprofundamento, pois não há nada mais poderoso do que duas mulheres negras que caminham juntas, se amparando, se cuidando e se fortalecendo. É isso, inclusive, que os outros temem. Ouso dizer que este trio — Lina, Natália e Jessi — é, além do grupo mais interessante de se acompanhar no programa dadas as suas conversas, comportamentos e posicionamentos, também o grupo mais forte da casa, e que vem se formando a partir de algo que nenhum outro ali dentro possui - a necessidade honesta de se apoiarem umas nas outras para chegar cada vez mais longe, seja na casa ou fora dela.
Portanto, se temos algo a levar como aprendizado deste programa no momento é exatamente isso. A estrutura está dada: Scoobys e Paulos vão tentar nos eliminar após nos desejar, vamos ser incompreendidas, violentadas, escorraçadas e agredidas de diversas formas para não conseguirmos seguir de cabeça em pé e/ou desistirmos, mas quando nos juntamos com nossas semelhantes nada disso supera o que construímos enquanto potência! Por mais que às vezes seja difícil continuar, é nessas amizades e alianças que nutrimos nossa força e cuidamos das nossas feridas, e essa tecnologia de sobrevivência — que também é estratégia de guerra — eles desconhecem completamente.
Que esse trio chegue ao final do programa e seja nosso pódio! Que possamos assistir ao Brasil torcendo por uma travesti, por três mulheres negras, por tudo aquilo que a nossa sociedade foi ensinada a odiar. Que elas e nós possamos deseducar essa sociedade e reensiná-la, para que nossas corpas sejam cada dia mais humanizadas, respeitadas, amadas. Para que Linas e Natálias e Jessis possam apenas ser e se aliançar pelo prazer e não pela dororidade - como diria Vilma Piedade sobre o nosso reconhecimento mútuo a partir da nossa dor em comum.