Quando o corpo ensina mais do que o quadro

3 months ago 90
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Por muito tempo, as instituições de ensino foram vistas como lugares de neutralidade. Um quadro negro (verde e branco, depois), cadeiras enfileiradas, silêncios disciplinados — como se aprender fosse algo que se faz de dentro pra fora, só com a cabeça, só com o “intelecto”.

Mas a gente, que é do corpo, da carne que sente e pensa junto, sabe que essa tal neutralidade é só mais uma fantasia que alimenta o privilégio de quem nunca precisou negociar sua existência pra dar aula.

A professora Travesti entra na sala. Sua presença, antes mesmo da chamada, já provoca o currículo escondido entre os muros da escola. O corpo dela não pede licença, mas também não invade: ele existe. E nesse existir, já ensina. É sobre isso que precisamos falar.

Corpos políticos são aqueles que, apenas por estarem ali, já gritam – sempre digo que uma Travesti é um outdoor.  A professora Travesti, com seu salto alto e seu batom vermelho passado com pressa (mas não sem afeto), carrega na sua presença o histórico de ausências que o sistema educacional nos ensinou a aceitar com naturalidade. Porque, sejamos honestas, por quantos séculos nos ensinaram que educar era sinônimo de se apagar? Mas a travesti professora não apaga. Ela acende.

O corpo dela, que tantos insistem em reduzir à margem, ao erro, ou ao “excesso”, é, dentro da sala de aula, um instrumento pedagógico por excelência. Não por fetichização, tampouco por exotismo, mas porque ali há uma epistemologia encarnada: uma forma de saber que não está nos livros didáticos, mas nas marcas de sobrevivência, nos silêncios que virou palavra, nas danças que precisou coreografar pra continuar viva em espaços que não foram feitos pra ela.

Esse corpo ensina ética. Ensina a lidar com o diferente, com o contraditório, com o que escapa à norma. Ensina, sobretudo, que a escola não pode mais ser esse lugar que obriga todo mundo a caber no mesmo molde. Porque o corpo Travesti da professora não cabe. E ainda bem. É comum que, ao adentrar espaços formais, esse corpo cause incômodo. Não raro, a Travesti que ensina precisa justificar sua autoridade: “Mas ela é mesmo professora? Tem diploma? Dá conta da turma?” Como se ser Travesti e ser competente fossem categorias em disputa. Como se a presença dela fosse um risco, quando, na verdade, é uma possibilidade. Uma possibilidade de reimaginar a educação.

O corpo político da professora Travesti desloca certezas. Ela mostra que ensinar também é um gesto de insurgência. Que dar aula não é só repetir conteúdos, mas provocar mundos. Que pedagogia se faz com escuta, com afeto, com coragem de habitar o desconforto. E que o desconforto, muitas vezes, é sinal de aprendizado. Mas sejamos justas: não é fácil. O preço da presença política da Travesti nos corredores escolares ainda é alto. Vai desde os olhares atravessados no recreio até os questionamentos velados nas reuniões pedagógicas. Passa pela solidão que se esconde atrás da mesa da sala dos professores. E, sobretudo, pela violência institucional que se disfarça de burocracia: aquela que barra contratações, nega progressões, e constrói corredores estreitos demais para que uma Travesti caminhe ereta.

Mesmo assim, ela fica. Ela insiste. Porque a sala de aula também é campo de disputa. Porque ela sabe que cada vez que entra e dá bom dia, o mundo muda um pouquinho. Porque os alunos e alunas, mesmo sem dizer, aprendem com seus gestos o que é dignidade. E isso não é romantização. É resistência.

A professora Travesti, ao existir dentro da escola, amplia o horizonte do que pode ser um sujeito pedagógico. Ela mostra que há saberes que só se produzem a partir da dor, mas que se transformam em potência. Que o corpo, quando é recusado, pode virar denúncia, mas também pode virar ponte. E mais: ela mostra que escola que se diz democrática e plural, mas que não acolhe corpos dissidentes, está mentindo pra si mesma.

A presença política da professora Travesti é uma provocação ao projeto de escola que temos. Não porque ela deseje destruir, mas porque ela sonha com uma reconstrução. Uma escola onde o currículo seja vivo, os afetos sejam legítimos, e o aprender não precise passar pela negação da existência de ninguém. Porque ensinar, pra ela, não é só um ato profissional, é um ato de afirmação de vida. É dizer: estou aqui, sou Travesti, sou professora, e esse corpo também é um lugar de saber. Ela não pede permissão. Ela constrói espaço.

E talvez, no fundo, seja essa a grande lição: que os corpos que mais nos ensinam não são aqueles que repetem fórmulas, mas os que ousam viver. Que a política, dentro da escola, não está apenas nas eleições do grêmio ou nos temas da redação do ENEM, mas nos corpos que se colocam inteiros na tarefa de ensinar. A professora Travesti, com sua existência política e pedagógica, nos lembra que não há neutralidade quando o assunto é vida. E que a escola do futuro será aquela que não apenas aceita, mas aprende com a diversidade. Porque, no fim das contas, o corpo dela nos ensina mais do que qualquer apostila.

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