Portaria coibe transfobia por agentes policiais - Correio Popular

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A estudante Nubya da Silva Pereira mal dormiu naquela noite de março de 2019 pensando no que havia feito para ser alvo de tamanha agressividade. Naquela tarde, ao tentar usar o banheiro público do Terminal Ouro Verde, em Campinas, foi impedida aos gritos. “Cadê seu documento? Sem documento você vai ao banheiro de homem. Homem é homem e usa banheiro de homem. Você não tem documento ratificado”, ouviu, por cerca de 40 minutos, de dois seguranças do terminal e de uma senhora, que acionou os agentes ao ver Nubya, uma mulher transexual, em direção ao sanitário.

Ela só conseguiu usar o espaço porque uma amiga foi acionada e interveio na situação. Quando acordou no dia seguinte, teve a certeza de que faria um boletim de ocorrência. Em vão, novamente foi alvo da intolerância.

“Fomos à Delegacia da Mulher e meu psicológico estava muito atacado pela transfobia que eu sofri e dor que eu carregava”, relembrou na sexta-feira, agora com 22 anos. A transfobia sofrida no Terminal Ouro Verde lembrava os 18 anos que passou frequentando o banheiro masculino, quando segurava a urina até ver o banheiro vazio para usá-lo.

Quando começou a sua transição, aos 18 anos, já entendia sua identidade de gênero feminina e reconhecia que tinha uma opção correta de banheiro para ela. Naquele março, quando não pôde usar o banheiro, lembrou-se do medo de entrar em um local cheio de homens, colocando seu corpo em risco e aumentando a violência. Além disso, os gritos, que a chamavam de “homem”, desrespeitando sua identidade, seguiam ecoando na mente.

Diante da delegada, acreditou que isso cessaria. “Pensei que, por ser uma mulher, o atendimento seria outro. Mas a delegada não estava me ouvindo de verdade. Não ouvia o meu sofrimento. Imagina se fosse um homem?”, pondera, sobre o momento em que prestou depoimento.

Quem a acompanhou neste dia foi Maria Lucia Quirino de Castro, a Lúcia, hoje com 49 anos, e que atua no coletivo Aos Brados, voltado à comunidade LGBTQIA+ e periférica. Foi ela que ajudou a amiga no conflito ocorrido no terminal. Segundo ela, o descaso foi ainda maior na delegacia.

“Ela (delegada) disse que era um caso corriqueiro e normal. Mas fez o registro e nós falamos que tínhamos prova de áudio, vídeo e testemunhas. Só que ela se negou a anotar todas essas possibilidades no boletim de ocorrências, o que dificulta você a continuar sua próxima ação, que é judicializar o caso. E a empresa também se negou a passar os nomes dos seguranças. Então, tudo foi dificultado para apurar o caso.”

Em prol delas

Visando a coibir a transfobia e homofobia por partes de servidores que atuam na segurança pública, a Polícia Civil de São Paulo publicou uma portaria no Diário Oficial do Estado, no início deste o mês, na qual define normas de atendimento a travestis e transexuais nas delegacias do Estado. O documento integra uma série de medidas adotadas pela instituição, cujo objetivo é o de aprimorar os serviços prestados nos Distritos Policiais, a fim de ampliar a proteção a esse público e reforçar a capacitação permanente dos policiais.

Uma das determinações reiteradas pela portaria é a que diz respeito ao nome social das pessoas em todos os registros, documentos e atos de polícia judiciária. Além disso, ela também estabelece o procedimento a ser adotado nos casos de abordagem e busca pessoal.

As regras definidas pela portaria atendem ainda a outras ações administrativas criadas com a mesma finalidade, como o Decreto Estadual de nº 55.588/2010, destinado a todos os órgãos públicos, bem como a resolução conjunta firmada entre os Conselhos Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT), a legislação internacional de Direitos Humanos, a Lei Estadual que penaliza a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero, além do Decreto de n° 65.960/2021, de 26 de agosto de 2021, que ampliou o combate aos crimes de intolerância.

De acordo com a advogada e professora de Direito Penal e Processual da PUC-Campinas, Christiany Pegorari Conte, a portaria enfatiza aspectos que já existiam em outras medidas, mas complementa e regulamenta outros quesitos, tornando-a mais um meio legal para garantia de direitos das populações LGBTQIA+.

No entanto, apesar de previstas em lei, Christiany reconhece o abismo entre a lei e a efetividade dela. “Acho que um dos maiores problemas é a o cumprimento da legislação e de políticas públicas adequadas. Isso se deve ao fato de que não temos levantamento de dados oficiais sobre a violência contra essa população. Ademais, não basta modificar a lei, é preciso trabalhar a questão da educação, do rompimento do preconceito etc.”

Outro ponto é que tais medidas ocorrem em âmbito estadual, não alterando legislações federais criminais, como o Código Penal e a Lei de Execução Penal. Com isso, alguns estados passam a ter mais proteção, enquanto em outros elas são reduzidas, não havendo um consenso.

Nesse sentido, Christiany aponta que o Estado de São Paulo tem avançado na pauta em relação aos demais. No entanto, quando os direitos das pessoas LGBTQIA+ são vistos sob uma ótica nacional, o Brasil segue sendo o mais violento para essas populações.

“No âmbito estadual, pelo menos 45 proposições aguardam análise nas Assembleias Legislativas em estados de todas as regiões do país. O Sudeste lidera o número de propostas. No âmbito federal (projetos de leis federais) e em outros estados, as coisas estão caminhando mais lentamente”, e enfatiza: “O Brasil segue como um dos países que mais mata a população LGBTqia no mundo. Sem contar com o incremento do discurso do ódio e as subnotificações que ainda acontecem relacionadas aos crimes praticados por transfobia e homofobia.”

Para quem vive na pele, dispositivos legais são importantes, mas é preciso ainda um longo caminho que perpasse a educação para alterar uma cultura violenta.“Se a gente não passar pelo processo de formar e entender, num processo de base, como a gente vai capacitar esses agentes publicos a nos atender?”, questiona Lucia, sendo complementada por Nubya: “Porque, enquanto eles fazem leis, a gente ainda vê as estatísticas: a estimativa é de 35 anos de vida para uma pessoa trans. A polícia em si não me ajudou em nada no processo e eu fico pensando na pessoa que encontrará a transfobia institucional depois de mim.”

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