Por que o corpo, o poder, a liberdade e as ideias da mulher ainda incomodam tanto? - Diário do Nordeste

3 years ago 1340
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“Onde você, mulher, se encontra?” Uma das cearenses que você vai conhecer aqui me atravessou com essa questão, durante nossa conversa. A resposta é difícil numa sociedade que tem medo de que a gente se conheça, mas a encontrei nos relatos de Karol, Telma, Silvia e Vera: a mulher se encontra dentro de si.

Neste mês de março, "Mês da Mulher", o Diário do Nordeste ouviu cearenses que, de alguma forma, subvertem as lógicas impostas a elas. Falam de como o mundo, com todas as suas estruturas, ainda se incomoda, se assusta e questiona os corpos, os desejos, as ideias, o poder – e a própria identidade.

Não faz nem um mês, por exemplo, que a Maria, atriz e cantora que participou do BBB 22, foi execrada por beijar quem quis, dançar como quis, em rede nacional. “Promíscua”, bradavam as redes, como um tribunal que jamais se ergueria sobre homem algum.

A lógica da falta de liberdade sobre o próprio corpo, aliás, é sentida em cada músculo pela servidora pública cearense Karol Paiva, 40. Mãe de dois filhos e atleta de crossfit há 7 anos, ela lida com um julgamento quase diário, vindo de diversos lugares.

“É comum demais ouvir isso: ‘tu tá com corpo igual ao de homem’, ‘olha o tamanho do teu braço, da tua perna’, ‘onde fica o ser feminino?’. Já me pararam na rua pra perguntar se sou fisiculturista ou ‘travesti’. Eu sentia muito, mas com o tempo fui tirando o preconceito de letra”, relata.

karol paiva, atleta cearense

Legenda: Karol Paiva é praticante de crossfit há cerca de 9 anos

Foto: Arquivo pessoal

Para Karol, as reações negativas à forma como trata o próprio corpo vêm de todas as expectativas sociais sobre a mulher, que “seja magra, gorda, calma ou estressada” tem ocupado diversos espaços e papéis diferentes dos designados a elas.

Se a mulher tira tempo pra se cuidar, é narcisista. Se não se cuida, é desleixada, o marido vai trair. Se coloca o filho na creche, é irresponsável. Se fica em casa cuidando, que ser sustentada. A verdade é que a nossa sociedade é muito preconceituosa.

Karol Paiva

Atleta e servidora pública

Segundo a atleta, que já foi vice-campeã brasileira na modalidade que pratica, a postura determinada pela maturidade de quem foi mãe cedo impõe respeito no “meio muito masculino” em que vive – mas, por ser mulher, a firmeza é interpretada como insensibilidade.

“Convivo muito mais com homens do que com mulher, a minha postura imprime respeito. Mas o meu tamanho não tira o coração que eu tenho, não tira minha feminilidade. Olho pra minha história e vejo com orgulho a mulher que eu sou”, sentencia.

“Mulheres carregam um poder muito forte”

Esse orgulho de si é compartilhado por Telma Lima, 46, que ocupa, hoje, dois espaços masculinos por tabu: é dona de uma sucata que leva o nome dela, onde vende peças para automóveis há 15 anos; e mãe de santo à frente de um terreiro de umbanda em Fortaleza, fundado por ela há 8.

Na religião, aprende todos os dias sobre igualdade, sobre “se valorizar como mulher, perceber o potencial, as qualidades, as virtudes e desejos e repassar isso aos filhos e filhas”, como diz. No trabalho, prova que “pode resolver tudo como qualquer homem”.

É um ramo de 90% de homens, e eles chegavam procurando peças e fingiam não me ouvir, iam até outro funcionário homem. Já sofri preconceito, mas hoje tenho meu espaço que construí com muito trabalho e esforço. Sou respeitada.

Telma Lima

Comerciante e mãe de santo

telma lima, comerciante e mãe de santo cearense

Foto: Reprodução/Produtora Peixe Mulher

A força presente na voz e nos olhos de Telma, ela não hesita, sabe de onde vem. “A umbanda me fortalece na busca do autoconhecimento. Todas as mulheres são mágicas, carregam um poder muito forte. Quando a gente não visualiza isso, começam a querer minar o nosso poder, pra que nos sintamos sempre sujas e frágeis”, frisa.

Por saberem do que somos capazes, tentam destruir a nossa força, mas não conseguem nem vão conseguir. Desejo muito que todas as mulheres se unam no mesmo propósito, nas mesmas batalhas e guerras, por um mundo melhor e mais igual.

Telma Lima

Comerciante e mãe de santo

Essa aliança entre as mulheres e o entendimento de que não competem entre si, bases do conceito de sororidade, devem ser “prioridade máxima” delas, como opina Silvia Cavalleire, 29, professora e atual coordenadora do Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues.

“Buscamos o mesmo objetivo, que é ter direitos iguais. Precisamos entender que temos voz e que ela não deve ser silenciada, que não são os homens que devem decidir como nós devemos ser e onde devemos estar. Isso vai mudar totalmente a lógica desse sistema”, sentencia.

Silvia Cavalleire, professora e coordenadora do Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues

Legenda: Silvia Cavalleire, professora e coordenadora do Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues

Foto: Arquivo pessoal

Outro ponto importante, segundo ela, é o entendimento sobre as muitas formas de ser mulher, decisivo para que todas tenham liberdade de pensamento, ação e crença – sem julgamentos nem questionamentos.

“Quando comecei a me entender mulher, as pessoas queriam ditar que meu corpo biológico é que me definia. Tive que mostrar no dia a dia que não. Tento transformar na cabeça das pessoas que ser mulher é muito mais amplo do que nascer com determinado corpo”, aponta Silvia.

Tudo o que é relacionado às mulheres é questionado, porque é a única forma de nos deslegitimar. Já que se conseguirmos colocar todas as pautas e alcançar todas as transformações que almejamos, vamos mudar essa estrutura de poder que só beneficia os homens.

Silvia Cavalleire

Professora e gestora estadual

“A saída é não retroceder”

Para Vera Lima, historiadora e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), o motivo pelo qual uma sociedade antiquada em pleno 2022 ainda questiona tanto e se incomoda tanto com o avanço das mulheres é simples: “se ela conquista, causa indignação”.

“A mulher está se libertando, se tornando mais independente, mas à medida em que vai conquistando esses espaços, a sociedade avança no preconceito. Não só a mulher está aparecendo mais, mas a violência e os questionamentos sobre seu lugar e seu papel também”, lamenta Vera.

A sociedade compreende que a mulher tem os lugares dela: pode trabalhar, mas em profissões femininas. Se ela está em espaços outros, é como se tirasse a virilidade do homem, ao mesmo tempo em que perde a sua feminilidade. 

Vera Lima

Historiadora e professora

A historiadora entra em sintonia com as cearenses que ouvimos aqui ao sentenciar que só há uma saída para tentar reverter o quadro de desigualdade de gênero ainda vigente: a união entre as mulheres.

“Nossa sociedade está cada vez mais polarizada, aumentando abismos. Mas esses questionamentos e julgamentos são uma reação, são provocados pelas nossas atitudes. Então, a saída é a gente ocupar os lugares mesmo. Protestar, avançar. A saída é não retroceder, combater, se unir, se organizar”, finaliza.

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