Pioneira, Casa da Baixa Costura acolhe e capacita pessoas trans, travestis e não-binárias - G1

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Uma das casas do bairro de Mangabeira, em João Pessoa, emana luz neon e música alta, perpassadas por gritos e aplausos calorosos. Ali de dentro acontecia um baile, uma "ball". Várias pessoas, trajando suas melhores roupas — plumas, lantejoulas e muito brilho —, faziam performances ensaiadas na ponta dos pés para tentar conquistar uma das categorias disputadas na noite.

Um dos coletivos presentes, a Casa da Baixa Costura, além de batalhar, compôs o grande júri. Mas não só nessa noite a Baixa Costura se faz presente. Pioneira na Paraíba, a casa foi a primeira do estado a juntar pessoas trans, travestis e não-binárias em volta da cultura Ballroom para promover resistência, arte e possibilidades.

A Casa da Baixa Costura surge em Campina Grande como forma de coletivo e coletividade de artistas independentes que trabalham com produção cultural, musicalidade e performance. Com o tempo, amadurece e passa a ser conhecida como uma casa de ballroom.

Hoje com 14 participantes, traz poesia, moda decolonial e capacitação. Durante a pandemia de Covid-19, trabalharam na identidade visual de uma de suas integrantes, a cantora Bixarte — uma das vozes mais atuais e expoentes da Paraíba. A Casa abriu o projeto 'A Nova Era' da artista, assinando style, direção, produção, maquiagem, cabelo e toda a produção do seu último EP, 'Faces'.

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Trabalhando a performance e levando a cultura ballroom para outros espaços, a Casa começou a se expandir e proporcionar oportunidades.

“Formalizar gente e teorizar gente em técnicas para que a gente se insira nesses editais e nesses espaços mais gourmetizados, mais elitizados, para a gente não ficar só preso em bolhas. (...) Travestis, pessoas trans e pessoas pretas devem estar em evidência”, disse a fundadora e mãe da Casa, a artista de 26 anos Dorot Ruanne.

Possibilidades para corpos em vulnerabilidade

A Casa da Baixa Costura é uma instituição, um coletivo, uma ONG e uma casa de ballroom, como explica Dorot. Campinense, mudou-se para João Pessoa para cursar design de moda. Era uma paixão antiga já. Sua avó era costureira e Dorot ficava brincando com os retalhos. Quando maior, acompanhava a mãe no seu trabalho, em uma fábrica de tecidos, onde admirava as máquinas.

Sempre desenvolveu suas roupas, sua linguagem e expressão. Apesar disso, demorou para se considerar artista:

“Enquanto uma pessoa travesti paraibana preta, eu sinto que falta muito, porque é algo que não tá na realidade. Hoje em dia, graças a trabalhar bastante essas memórias, se empoderar de mim com a ballroom, com as outras meninas, com a minha Casa da Baixa Costura, eu me considero uma artista, me considero uma artista muito foda”, explica.

Mãe da Casa da Baixa Costura, Dorot Ruanne é pioneira na Paraíba e criou a primeira casa de ballroom do estado: "É uma arma de defesa e uma arma para nossa sobrevivência!" — Foto: Reprodução/Instagram/Dorot Ruanne

Para corpos dissidentes, o espaço e mercado de trabalho ainda é muito limitado. Dentro dessas limitações, surge o espírito vanguardista de Dorot: “Eu vou criar! Não estão me colocando nos espaços, então eu crio meu próprio espaço”, relata.

Desfile no ball 'Geranua', que acontece em João Pessoa — Foto: Vini Baixa Costura/Arquivo pessoal

A Ballroom é um movimento de dissidência que surgiu a partir de identidades trans e travestis negras dos Estados Unidos, durante o surto da epidemia de HIV nos anos 80. Segundo Dorot, a principal questão que centra todo o movimento é cuidar dos semelhantes: “Nesse momento, a maior vítima éramos nós, pessoas pretas dissidentes, então aconteceu essa junção, esse acolhimento, com os corpos que estavam em vulnerabilidade”.

Nascido a partir da resistência, autocuidado, afeto e preocupação com saúde da população LGBTQIA+, na Paraíba não ia ser diferente.

Uma casa de ballroom pode ser uma instituição enquanto local físico, mas antes disso, é um lugar onde as pessoas possam se sentir acolhidas.

Cada casa tem sua liderança, "mães" e "pais" que geralmente são pessoas mais experientes na cena LGBTQIA+ da região e assim conseguem prover a orientação e apoio necessário para seus "filhos". Com isso, são formadas famílias alternativas que oferecem suporte e segurança para pessoas marginalizadas.

“Porque muitas vezes a gente não tem isso dentro da nossa própria casa. (...) É valorizar quem nós somos, nossos corpos, as nossas profissões, o que a gente tem de melhor na gente artisticamente falando, profissionalmente falando”, disse a mãe.

Já a ball é um evento onde todas as casas da cena local se reúnem para celebrar suas vidas e existências. É um baile e tem que ir vestido a caráter. Todos os participantes se empoderam de si e vários desfiles são feitos, cada um por categoria. As categorias podem ser de dança — a mais comum sendo o vogue —, de look e até de rosto.

Os inscritos em cada categoria competem entre si e, no final, são julgados por uma banca composta por pessoas com reconhecimento dentro da comunidade e conhecimento sobre a cultura.

Alguns bailes possuem um grande prêmio final, em dinheiro. Porém, ali, a premiação maior da noite é se cercar de arte e comemorar. Seja servindo rosto na categoria face, seja uma caminhada na categoria de desfile, a runway; seja dançando o vogue ou fazendo um armcontrol, o objetivo é a criação de autoestima e expressão através do acolhimento para pessoas que foram historicamente subjugadas.

Mother Dorot Ruanne, da Casa da Baixa Costura, mostra como servir na categoria face

Mother Dorot Ruanne, da Casa da Baixa Costura, mostra como servir na categoria face

A mãe da casa vê sua posição com bastante responsabilidade. Ela mesma usa o antigo ditado: “para ser rainha não basta a coroa, tem que saber governar”. Para alguns de seus filhos e filhas que tiveram afeto negado por ser um corpo dissidente, ali é a primeira casa.

“É uma responsabilidade muito grande e umas delas é se manter viva, para que sua casa se mantenha viva, para que seus ideais se mantenham vivos. Porque eu sei que se eu morrer hoje estou deixando um legado muito foda dentro da Paraíba: sendo pioneira de uma casa de ballroom".

“A ballroom é um espaço muito político”

A primeira vez que Vini Menezes, artista e auxiliar de recursos humanos, pisou em um baile foi em 2020, na ball ‘Geranua’, que acontece em João Pessoa.

Antes 007 — nome dado àqueles que frequentam os bailes, mas não têm casa —, ganhou naquela noite a categoria vogue femme e assim surgiu o convite para a Casa da Baixa Costura.

Vini começou a dançar com 14 anos, treinando na sala de casa vendo vídeos de Beyoncé. Foi caminhando por vários estilos, incluindo o jazz. Em 2016, conheceu o vogue na internet. O estilo de dança encantou, mas ainda não havia cena na Paraíba.

Hoje com 21 anos, tornou-se Vini Baixa Costura e conseguiu evoluir a técnica. Dentro da Casa, participou de algumas oficinas de vogue e teve contato com Stanley Millan, que é um dos criadores do estilo e técnica de vogue que mais gosta: o new way. A partir daí, passou a entender mais sobre a história da ballroom.

Vini Baixa Costura mostra passos do vogue que movimenta a cena Ballroom da PB

Vini Baixa Costura mostra passos do vogue que movimenta a cena Ballroom da PB

“Tem algumas coisas que acabam se repetindo para todos os contextos. O jeito que algumas categorias ganham mais ou menos atenção. O jeito que novos temas vão sendo discutidos. Então, acaba que a ballroom é um espaço muito político. É um espaço que desde o início, desde os anos 60, foi criado para questionar o que acontece e o que não acontece no resto da sociedade como um todo”, disse Vini.

Hoje em dia, por exemplo, é comum que em bailes todos os corpos caminhem por todas as categorias, mas nem sempre foi assim. Antigamente, era comum a separação por gênero: em algumas, apenas homens cisgêneros desfilavam, não permitindo a performance de pessoas trans.

Conforme essas coisas vão entrando em discussão, esses parâmetros limitantes também são quebrados. Vini vê isso como um passo à frente: “é um espaço criado bem, bem à frente da sociedade”.

“Estar cercado de pessoas que entendem sua arte e entendem o que é seu corpo. São pessoas que podem até julgar sua maquiagem, sua roupa, mas são pessoas que não te julgam como a maior parte da sociedade julga. Então, é um ambiente muito acolhedor quando você é um corpo dissidente” , explica.

Artista Vini Baixa Costura começou a se entender melhor depois que foi acolhido pela Casa: “Teve coisas que eu ainda era muito inseguro, em relação a minha performance de gênero, estética e comportamento que eu comecei a lidar melhor no meu dia a dia e consegui andar de cabeça erguida, e dar melhor no meu ambiente de trabalho também.” — Foto: Vini Baixa Costura/Arquivo Pessoal

A visão de Vini espelha os ensinamentos da sua mãe, Dorot. Para ela, a ballroom é criação de possibilidades e autoestima através de belezas múltiplas e ideias singulares:

“A gente tá sempre procurando nos entender e nos acolher, compreender o outro e se acolher e se tornar essa guerrilha de sobrevivência e autodefesa para nós, que somos corpos dissidentes e estamos em uma margem social. A gente sabe muito bem que estamos na margem e essa conjuntura nos coloca. E a ballroom já salvou minha vida antes e sempre, sempre vai salvar a minha vida. A ballroom é o espaço que a gente deve se sentir acolhida, sabe?”

Um movimento ‘traviarquista’

Tanto Vini quanto Dorot são presenças garantidas e nomes de peso nas oficinas de vogue promovidas todas as sexta-feiras, em espaços públicos de João Pessoa. Os encontros geralmente acontecem na Praça da Paz, nos Bancários, ou no Espaço Cultural, em Tambauzinho. As aulas são gratuitas e abertas para o público, basta entrar em contato com a casa através das redes sociais.

Já os bailes costumam acontecer nas casas de quem participa do movimento e também são divulgados nas redes sociais. Além da competição e batalhas por categorias, apresentações culturais e oficinas também acontecem.

Muitas pessoas também frequentam apenas para assistir, fotografar e se cercar da energia do local. Dorot diz que para competir, é bom ter técnica, mas o principal é saber a essência da ballroom.

Desfile na ball 'Geranua', que acontece em João Pessoa — Foto: Vini Baixa Costura/Arquivo pessoal

Apesar da iniciativa, Dorot cobra que os gestores públicos ofereçam um espaço seguro para a promoção desses eventos. Além disso, que se paguem e monetizem seu trabalho. A falta de visibilidade e espaço em locais institucionalizados, ainda são um empecilho.

“Porque a gente é um coletivo, então a gente tem que se institucionalizar. Temos que saber fazer o dinheiro girar e a gente sabe que para fazer o dinheiro girar a gente tem que se movimentar (...) é um movimento 'traviarquista'”, disse Dorot.

A mãe ressalta a importância de capacitar suas filhas e filhos através de oficinas, produção cultural e inscrição em editais.

A cena em João Pessoa já é grande e se organiza também em uma página única, que divulga o trabalho coletivo feito por todas as casas. Além disso, um minidocumentário foi produzido por Zilmarc Paulino, mostrando como essas potências artísticas estão ocupando espaços públicos da cidade através da ballroom.

Com a criação da Casa da Baixa Costura, Dorot já vê a mudança: surgiram outros coletivos de pessoas trans, travestis e não binárias negras na Paraíba. Hoje, a capital também conta com a Haus of Benvenutty, Casa das Milhões e Kiki House of Perfeytas, por exemplo.

Nasceram produtores e produtoras musicais, diretores e diretoras de artes, costureiros e costureiras — artistas que subvertem uma lógica de marginalização.

“Quando a gente se junta para criar nosso próprio sistema dentro de um sistema é muito utópico, é muito bom porque é uma possibilidade. (...) O céu não é o limite, é além do céu. Nós queremos alcançar o mundo!”, finaliza a mãe, Dorot Ruanne.

*Sob supervisão de Taiguara Rangel

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