Os Primeiros Soldados: "Quem lidou com a pandemia foi o capitalismo’ - C7nema

3 years ago 801
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A frase que dá título a esta entrevista é uma acurada tradução do Brasil de Bolsonaro feita pelo cineasta Rodrigo de Oliveira, que pavimentou o seu nome na crítica com um contundente périplo pela análise de filmes antes de se firmar como realizador, conquistando láurea após láurea com o caudaloso “Os Primeiros Soldados”. A sua carreira em circuito comercial no Brasil começa nesta quinta-feira. A narrativa promove uma reconstituição de época da Vitória da década de 1980 sob um prisma dos mais trágicos: a dor das primeiras pessoas que contaminadas com o HIV. No painel de época, voltamos a um tempo em que o vírus era chamado de “peste gay”, impondo aos seus portadores uma carga de homofobia e de transfobia. Em janeiro, Oliveira foi laureado com o Prémio Carlos Reichenbach de Melhor Filme da seção Olhos Livres da 25ª edição da Mostra de Tiradentes. A vitória trouxe o endosso de uma das mais respeitadas maratonas cinematográficas do país para um filme que vem ganhando o mundo desde novembro de 2021. A sua estreia mundial aconteceu no 70º Festival Internacional de Cinema de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, vencendo os prémios de Melhor Filme do Júri Jovem e do júri popular. A seguir veio o 52º Festival Internacional de Cinema da Índia, que lhe rendeu o Prémio Especial do Júri. Em dezembro, passou pela Première Brasil do Festival, na seção Novos Rumos, de onde o filme saiu com um prémio especial do júri para a atriz Renata Carvalho. O seu desempenho é avassalador, assim como o de Johnny Massaro. Esta quinta, haverá um debate sobre o filme no Rio de Janeiro, no Estação Net Rio, às 19h (23h em Lisboa), com a presença de Oliveira e de sua trupe, com mediação de Evandro Manchini.

Em Vitória, 1983, um grupo de jovens LGBTQIA+ celebra o réveillon sem ideia do que se avizinha. O biólogo Suzano (Massaro) sabe que algo de muito terrível começa a transtornar seu corpo. O desespero diante da falta de informação e do futuro incerto aproxima Suzano da artista transexual Rose (Renata) e do videomaker Humberto, igualmente doentes. Juntos eles tentarão sobreviver à primeira onda da epidemia de Aids.

Rodrigo de Oliveira (de boné vermelho) no set da longa que estreia nesta quinta no circuito brasileiro

Depois de falar com o C7nema em novembro, Oliveira, que realizou ainda Teobaldo Morto, Romeu Exilado (2015) e a pérola Ano Passado Eu Morri (2017), falou-nos novamente sobre a construção de Os Primeiros Soldados.

Qual é o maior risco de se abordar uma epidemia, que é como a Medicina dos anos 1980 chamou o avanço do HIV, durante uma pandemia? Que estratégias de delicadeza adotou na sua construção narrativa?

Nós filmamos em setembro e outubro de 2019, antes da pandemia da Covid, mas o filme foi todo montado e finalizado em regime de quarentena. Os ecos entre uma crise sanitária e outra são muito explícitos, mas, também, são acidentes cósmicos. O que parece evidente é que a luta contra o HIV estabeleceu imediatamente não só um senso de comunidade entre aqueles inicialmente afetados, como também um ativismo radical, o despertar de seres políticos. Sem os ativistas do HIV, em sua maioria pessoas LGBTQIA+, nós não teríamos os tratamentos disponíveis hoje em dia. A Covid não gerou essas mesmas reações, e eu acho que pagamos por isso: quem lidou com a pandemia foi o capitalismo, e, por isso, toda a desigualdade na distribuição das vacinas; toda a facilidade para que governos anticiência cometessem genocídios nacionais; toda a corrupção. Um ativismo Covid, e um senso comunitário maior – lições da luta HIV/AIDS – poderiam mudar a história do enfrentar da pandemia.

Que reações recebeu de populações seropositivas ao exibir o filme?

O filme tem pessoas que vivem com HIV no elenco e na equipa. Foi desenvolvido e executado com a parceria de pessoas que vivem com HIV. Mas a experiência da sorologia é única para cada pessoa, e o trabalho do filme é lidar de maneira honesta com a história destes personagens fictícios, torcendo para que isso ecoe nas pessoas da vida real. Essa tem sido a história de “Os Primeiros Soldados”. A comunidade que vive com HIV tem abraçado o filme de maneira muito bonita. Mas existe também esse peso do ineditismo: esta é a primeira longa-metragem brasileira de ficção a abordar este período e estas pessoas. Inúmeras outras histórias sobre HIV precisam ser contadas ainda, é preciso tirar o tema da invisibilidade, falar do passado sim, mas também do presente, sobre as vidas positivas de hoje. O futuro da luta contra a AIDS/SIDA começa agora.

O filme ampliou ainda mais o prestígio da atriz Renata Carvalho. Como vê a visibilidade que o filme trouxe às lutas identitárias dela, na luta contra a transfobia?

A luta da Renata e das suas pares não é nem por reconhecimento (isso virá naturalmente), é por oportunidade. O talento trans existe, é volumoso, variado e não pode ser ignorado mais. Não é concebível que atores cis sigam interpretando personagens trans. A prática do transfake precisa acabar. O nosso filme não faz nada além do óbvio: uma protagonista travesti é interpretada por uma atriz travesti, uma das maiores atrizes do Brasil. E não só no elenco, mas nas equipas, as pessoas trans do audiovisual existem e querem trabalhar. Para um diretor, a decisão é muito simples: os filmes ficam melhores quando são verdadeiramente diversos, à frente e atrás das câmaras.

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