Obra de Plínio Marcos chega ao Municipal e retrata país desandado - UOL

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Foi lá pela metade da década de 1980. Eu subia as escadas externas do Theatro Municipal para assistir à "Lucia di Lammermoor", quando fui abordado por um senhor com alguns livros na mão.

Pensei que fosse um daqueles antigos vendedores de libretos, que ficavam por ali antes dos espetáculos, e que já desapareciam naqueles anos. Não era. Era Plínio Marcos, vendendo pessoalmente livros que ele editava por conta própria.

Fiquei boquiaberto. Plínio Marcos era um autor muito conhecido. Depois pensei: só um escritor tão fora de todos os parâmetros e de todas as convenções, como ele era, para agir assim.

Plínio Marcos, que não me parece ter hoje a projeção que deveria, era originário do espetáculo popular, da rua, do circo, com a mesma natureza de um José Mojica Marins, o Zé do Caixão, de uma Dercy Gonçalves, que carregaram até o fim a força dessas origens.

Plínio Marcos escreveu suas melhores obras sob a ditadura. Foi perseguido, censurado, preso.

Ele conta seus dissabores com a censura:

"Um filho-da-puta de um censor, num dia em que eu perguntei por que todas as minhas peças estavam proibidas, ficou nervoso:

– Porque suas peças são pornográficas e subversivas.

– Mas por que são pornográficas e subversivas?

– São pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode escrever com palavrão e escreve".

Naqueles tempos de repressão, o palavrão era subversivo, porque rompia a dignidade postiça das autoridades. Hoje, virou o contrário, virou a marca da corja que está no poder.

Nem por isso o palavrão em Plínio Marcos perdeu a sua força. Ele diz que escrevia "como se falava nas cadeias. Como se falava nos puteiros". O palavrão, em Plínio Marcos, traz, para o público que frequenta os teatros, a verdade dos meios aos quais estão vinculados. O palavrão, em Plínio Marcos, não é a retórica da vulgaridade, é uma expressão social e existencial que emerge com violência.

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Lembrei de Plínio Marcos vendendo seus livros nas escadarias do Municipal quando tive a notícia de duas óperas baseadas em suas peças "Navalha na Carne" e "Homens de Papel". Aquele artista perseguido, que resistia oferecendo suas obras na rua, agora adentrava nos ouros da sala suntuosa, sob a forma da ópera, da música mais sofisticada.

Elas foram apresentadas não faz muito, com belos cenários e excelentes montagens.

A primeira, "Navalha na Carne", foi composta por Leonardo Martinelli. O libreto se manteve fiel ao texto original. Ótima decisão, sobretudo porque Martinelli concebeu sua obra como um suporte orquestral, um tecido sobre o qual dispôs as vozes, evidenciando as grandes qualidades dramáticas do texto. A orquestra sustentou, comentou, sem interferir de fato na expressão cantada, dando a ela um destaque expressivo.

Com três excelentes cantores, Luisa Francesconi (Neusa Sueli), Fernando Portari (Vado), Homero Velho (Veludo), que sabem também encarnar personagens com convicção, o resultado foi poderoso. Num ambiente sórdido, aquela relação concentrada terrível, agressiva, dolorosa, entre seres que não sabem existir de outra maneira, e que dependem uns dos outros para essa única existência que sabem ter, se intensificava pela música.

No final, quando Neusa Sueli pergunta a Vado se ele vai voltar, a angústia desesperada e vazia de vínculos que temem se romper prolongou-se no silêncio.

A escolha de um barítono –ou seja, da voz mais máscula e enérgica– para o papel do travesti, parecia, de início, paradoxal. No entanto, essa mistura entre o masculino e o feminino tornou o personagem mais complexo e mais completo: Homero Velho foi um Veludo impressionante. Fernando Portari, o cáften Vado, mostrou as fragilidades de um falso forte. E como Luisa Francesconi foi comovente como Neusa Sueli, como seu monólogo tocou fundo.

"Homens de Papel", composta por Elodie Bouny, foi bem diferente. Música colorida, jogando com ritmos e com o som coral que invadiu poderosamente a sala, já que uma parte dos cantores foi instalada no balcão nobre do teatro. O número de personagens também era muito maior, e os episódios da ação se desdobraram.

O texto original foi adaptado em libreto por Hugo Possolo. Por vezes, no texto, havia voos sentimentais e um pouco grandiloquentes, não muito próprios ao universo de Plínio Marcos.

O emprego do coro e a dispersão de algumas cenas deram à obra como que uma natureza de cantata. Esse aspecto menos cênico não diminuiu as qualidades musicais, e os cantores solistas foram todos excelentes e convincentes.

Bela estreia, portanto, que além das qualidades próprias, trouxe à atenção esse grande autor que foi Plínio Marcos.

Bastava sair do teatro para ver o quanto ele é atual: sob a marquise do antigo Mappin, os sem-teto se preparavam para a noite. O que vimos dentro do teatro continuava fora, na realidade, na tragédia de uma cidade e de um país desandados. Delicadamente, vários funcionários do teatro avisavam, na porta de saída: "Não usem seus celulares, não mostrem seus celulares". O terror de uma sociedade, a nossa, que não sabe se resolver.

Tenho ainda um ponto, que pode parecer ínfimo diante dos horrores sociais que nos cercam. O Theatro Municipal ostenta, sobre seu palco, uma frisa, de grande beleza, de Alfredo Sassi, escultor milanês, representando o nascimento de Vênus e seu cortejo.

Não é de hoje que os administradores do teatro dependuram na frente dela enormes caixas de som, cujo lugar não é e não pode ser ali. Tratam, assim, aquela sala, que é tão requintada, como se fosse um galpão qualquer, onde se pode instalar qualquer coisa.

O respeito pela harmonia e pela beleza, que é um dos mais importantes sentidos do teatro máximo de São Paulo, não pode ter brechas. Nós somos ameaçados pela barbárie de todos os lados: não a agravemos.

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