O que é transfobia ambiental e qual sua relação com a emergência climática?

9 months ago 331
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Já ouviu falar da transfobia ambiental? O conceito tem ganhado atenção e esteve até presente nas discussões recentes do G20 , grupo das 20 maiores economias do mundo, no Rio, que jogou luz na necessidade urgente de transição justa para uma economia de baixo carbono e na forma como eventos climáticos extremos impactam de maneira desigual a sociedade, afetando com mais força grupos marginalizados.

Entre eles estão pessoas trans e travestis. Colocado à margem da sociedade e invisibilizado, este grupo luta cotidianamente pela sobrevivência no país que, pelo 15° ano consecutivo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), é o que mais mata pessoas trans, travestis e não-binárias no mundo.

Transfobia, em si, é o conjunto de atitudes, sentimentos ou ações preconceituosas e discriminatórias contra esses grupos, podendo ser tanto explícitas quanto sutis. Em tempos de acirramento de conflitos socioambientais e de calamidades por extremos do clima, que geram situações de emergência pública, comportamentos violentos contra essas minorias podem se exacerbar. Entra em cena a transfobia ambiental.

Cunhado do conceito de racismo ambiental, o termo ganhou holofotes no Brasil com as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul (RS) em maio deste ano, baseado na ideia de que pessoas trans e travestis são mais vulneráveis a eventos climáticos devido à sua situação vulnerável, social e economicamente. Durante o G20 Social, no Rio de Janeiro, a discussão integrou o painel "Tragédias Ambientais e o impacto para a população LGBTI+”.

O advogado e Vice-Presidente da Comissão Estadual de Diversidade Sexual e Gênero da OAB/RS, e Coordenador Jurídico da ONG Igualdade RS, Diego Cândido, explica que, durante as enchentes, se preocupou em ajudar as pessoas trans que estavam em extrema vulnerabilidade e que muitas perderam seus bens, se vendo em uma situação de impotência.

“Elas perdem alí o pouco que tinham conquistado. E eu vi isso na prática: pessoas que tinham conseguido a sua casa com suas coisas, ainda que de forma humilde e modesta, não tinham mais nada. É aquela situação em que tu tem um pouquinho mas, por conta da transfobia ambiental, perderam tudo. E aí elas são colocadas dentro de abrigos e albergues, sistemas que foram sendo construídos, mas não tinham nenhum preparo para receber essas pessoas”.

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Sobre a situação de pessoas trans em abrigos, Cândido explica que os principais desafios desse grupo foram o pertencimento e acolhimento, visto que muitas estavam sozinhas, separadas de entes queridos e à mercê da violência por outros grupos de pessoas, incluindo voluntários que atuavam na linha de frente desses espaços.

"Chegando lá (no abrigo), elas me diziam: Olha a gente está sofrendo transfobia, não só pelos pelos voluntários, mas também pelos outros abrigados. Porque os abrigados, assim a família tradicional perfeitinha composta por pai, mãe e filhinho não queria que as pessoas trans convivessem no mesmo espaço, sendo que deveriam ser acolhidas e deveriam estar num lugar seguro. Essa era a obrigação do Estado."

 Vinícius Vieira ft/Unplash Parada do Orgulho LGBTQIA+ no Rio de Janeiro. — Foto: Vinícius Vieira ft/Unplash

Violência e desigualdade em dados

Segundo a Quinta Avaliação Climática Nacional (NCA), embora as mudanças climáticas prejudiquem a saúde e qualidade de vida de toda a população, pessoas negras, povos indígenas, comunidades de baixa renda, pessoas com deficiência e minorias sexuais e de gênero estão entre os grupos de alto risco de impactos negativos devido a desastres relacionados ao clima.

Além disso, o estudo “Dano ampliado: deslocamento de pessoas LGBTQ+ em desastres” da Escola de Ecologia Social (UCI), em parceria com a Universidade da Califórnia, Yale University e a Universidade de Claremont mostra que pessoas LGBTQ+ enfrentam as piores condições de deslocamento em desastres climáticos do que outros grupos.

Segundo o levantamento, o deslocamento nacional por desastres LGBTQ+ é quase 2x maior que o deslocamento de pessoas cisgênero e heterossexuais e ainda maior entre pessoas LGBTQ+ negras (3,6%), o que traz um panorama, onde pessoas trans racializadas enfrentam um duplo fardo, onde racismo e transfobia se combinam, dificultando ainda mais o acesso a políticas públicas e programas de recuperação climática. A falta de inclusão de perspectivas interseccionais nas políticas de combate e adaptação às mudanças climáticas perpetua essas desigualdades.

 Alejandra M Sainz/Pexels Mulher segura cartaz em espanhol: "Sua transfobia está nos matando" — Foto: Alejandra M Sainz/Pexels

Na pesquisa, alguns entrevistados relataram suas experiências de deslocamento após um desastre. Entre as principais reclamações estão a duração do deslocamento, insegurança e falta de alimentos, crise hídrica, falta de eletricidade, condições de saneamento básico, isolamento e medo do crime.

No Brasil, além da marginalidade, muitas pessoas trans encontram dificuldade para conseguir trabalho formal e acabam recorrendo à prostituição para obter renda. O Censo Trans, realizado pela RedeTrans em parceria com o Instituto Positivo, revela que 82,4% das participantes atuam como trabalhadoras sexuais e que 63% possuem rendimento de até um salário mínimo.

O pesquisador, licenciado em Educação do Campo pelo Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior da Universidade Federal Fluminense (INFES/UFF) Ariel Barreto, reforça que a falta de dados impede a construção de políticas públicas e faz com que o Brasil continue a ser um país violento para pessoas trans. Ele acredita que “mesmo com alguns avanços, pessoas trans ainda têm que lutar por coisas básicas no Brasil, como o direito ao nome”.

O Brasil não está preparado. Nós poderíamos estar pensando em políticas públicas para o momento atual, mas ainda brigamos por um nome pelo qual queremos ser chamados", explica

— Ariel Barreto, pesquisador licenciado em Educação do Campo pelo INFES/UFF.

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Conflitos socioambientais acentuam injustiças

Quem conhece de perto as dores da transfobia ambiental é a pesquisadora, advogada e mestranda em Estudos em Etnodiversidade pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos em Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA) , Dandara Rudsan.

Residente de Altamira (PA), ela relata o impacto das construções, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, na vida de sua comunidade. "Em 2012, quando Belo Monte começou a desapropriar as famílias em Altamira, nossas vidas foram profundamente afetadas. Perdemos nossas casas, nossas terras e nossa conexão com o território que sustentava a existência mínima da minha família," desabafou.

 Fernando Frazão/Agência Brasil Dandara Rudsan. — Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ela destacou que o deslocamento forçado e a perda do território causaram danos irreparáveis às condições de vida e à identidade das comunidades locais. "Uma das violências que Belo Monte me causou é que hoje eu não tenho uma casa. Primeiro, por questões familiares, por não poder existir onde minha família está. Segundo, porque não tenho uma casa própria, com meu nome escrito. A qualquer momento, pode acontecer alguma coisa que você para de pagar o aluguel e não sabe para onde vai. Então esse foi um dos danos causados: ter crescido em um espaço tão grande e com uma certeza de que aquela era a minha existência, e nunca mais ter aquela terra para chamar de nossa.”

Rudsan também explica que a concentração de violências e os dados alarmantes fazem com que pessoas trans e travestis “não tenham outra solução, senão a defesa da vida”. "Nós não temos tempo de discutir com qualidade outra agenda que não seja a nossa sobrevivência. Sobreviver demanda cerca de 90% do nosso tempo e raciocínio e os outros 10% é o que sobra para fazer todas as outras coisas que a cisgeneridade tem tempo para fazer.

Por fim, ela critica a falta de reconhecimento da realidade das pessoas trans nos espaços de discussão sobre o meio ambiente, e a necessidade de ampliar a acessibilidade da sociedade para com a realidade dessas pessoas.

O modelo cis heteronormativo quer nos colocar em caixinhas o tempo inteiro. Ele nos diz que a travesti é feita apenas para discutir saúde, discutir HIV e violência, e não se imagina a travesti discutindo meio ambiente, danos da mineração, etc. Precisamos, de forma mais genuína, é de uma sensibilidade social para a realidade das pessoas trans nos territórios.

— Dandara Rudsan, pesquisadora e mestranda em Estudos em Etnodiversidade na UFPA.

Ironicamente, as mudanças climáticas podem ainda ampliar as desigualdades de saúde já existentes nas populações LGBTQI+, tornando-as mais vulneráveis aos seus impactos e com menos recursos para se recuperar. Em pesquisa recente, publicada no The Journal of Climate Change and Health, cientistas convocam estudiosos, profissionais, formuladores de políticas e climatologistas a considerarem os efeitos desiguais das catástrofes climáticas na saúde das pessoas LGBTQI+.

Ações legislativas contra a discriminação, coleta de dados mais inclusivos e treinamentos de sensibilização para prestadores de serviços de emergência são apontados como ações necessárias e urgentes para reduzir as disparidades e violências. A justiça climática também precisa reconhecer e combater a transfobia ambiental, promovendo políticas e ações que protejam as pessoas trans, garantindo-lhes segurança e recursos adequados diante de um mundo em transe febril.

 © Cezara Bușcă / Greenpeace Protestos na Romênia por justiça climática, de gênero, social e racial. — Foto: © Cezara Bușcă / Greenpeace

*Participante do Curso Valor de Jornalismo Econômico sob supervisão de Elisa Campos.
Edição de reportagem: Vanessa Oliveira

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