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Uma das primeiras ideias de Damares Alves como ministra de Bolsonaro foi anunciar através de um discurso feito em 2018 que pretendia retomar o Estatuto do Nascituro, um projeto paralisado em 2013 que previa o pagamento de uma pensão para mulheres vítimas de estupro que decidirem manter a gravidez.
Para Damares, esse era o projeto mais importante do Brasil.
E ele foi recuperado: "Temos projetos interessantes no Congresso Nacional. O mais importante que a gente vai estar trabalhando é a questão do Estatuto do Nascituro. Vamos estabelecer políticas públicas para o bebê na barriga da mãe nesta Nação.", palavras de Damares.
As mesmas pessoas que todos os dias dizem que é preciso tirar o estado de nossas vidas e que o Bolsa-Família é coisa para vagabundo acharam de bom tom oferecer ajuda financeira estatal à mulher que engravidou em decorrência de um estupro.
Mas eles pensaram sim no bolso do contribuinte.
Antes de aplicar o auxílio, a justiça tentaria cobrar do próprio estuprador o auxílio financeiro. Caso ele não fosse identificado, aí então o Governo auxiliaria financeiramente essa mulher até os 18 anos.
Então vejamos: a primeira opção era a de vincular pela vida toda a mulher estuprada ao estuprador.
O Bolsa-família essa turma critica, mas o bolsa-estupro tá valendo.
Essa é Damares Alves, uma das peças-chave para entender o horror do Bolsonarismo.
Damares é pastora, boa oradora, e foi ela que há alguns dias contou ao seu rebanho a horrenda história de crianças torturadas para fins se serem usadas em atos sexuais.
Dias depois, pressionada para exibir provas, teve que confessar que não as tinha.
É uma mulher invadida por paranóias, delírios e psicopatias.
Mas Damares gosta de dizer que faz tudo em nome das nossas crianças, e desde o período em que elas são fetos.
Isso é o que ela diz. Mas vejamos o que ela faz.
Percebam que curiosa é a vida.
Nos corredores do Planalto e da Esplanada, Damares convive amigavelmente com Airton Cascavel, o homem forte do ministério da saúde de Bolsonaro.
Cascavel é o sujeito que comandou a pasta na pandemia, mas deixemos por agora esse tema pra lá lembrando apenas que o Brasil tem 2,7% da populaçao mundial e registrou quase 13% das mortes. Isso em contexto de enorme subnotificação
Pesquisas indicam que, não fosse a atuação perversa do governo, mais de 400 mil poderiam ter sobrevivido. Mas vamos pular essa parte.
Importa aqui dizer que Cascavel foi preso duas vezes por estupro de menor.
Damares se preocupa? Não. Nem um pouco.
Outra coisa que não importa para Damares é falar de educação sexual nas escolas.
Mesmo sabendo que estupros no Brasil são cometidos em casa e contra crianças e adolescentes.
Aos números: 79% dos estupros são cometidos contra crianças e adolescentes e em 78% dos casos eles acontecem em casa - pais, tios, primos, padrastos...
Ainda assim, Damares não quer saber de falar de educação sexual nas escolas. Isso pra ela é perversão, tara.
Não quer também saber do Disque-denúncia, número criado em 1995 para que, anonimamente, casos de estupro podem ser denunciados. Como há muitas denúncias de crimes contra pessoas trans e travestis, Damares não é muito simpática ao recurso.
Damares acredita em DEus e também que basta deixar as famílias em paz que elas mesmas cuidam de seus problemas.
Afinal, tudo o que existe no mundo são indivíduos e suas famílias, como ensinou Margaret Thatcher, a mãe do neoliberalismo. Não há sociedade, apenas indivíduos e famílias.
Por isso Damares fala tanto em família: é tudo o que existe no mundo.
Quando Damares fala em família - e ela fala fartamente em família a ponto de incluir a palavra no nome de seu ministério que passou a se chamar Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos - ela fala de uma ideia idílica de família brasileira.
Na família de Damares, o pai manda, a mulher obedece.
O pai é o provedor, a mulher se sujeita.
O pai é o patriarca, a mulher a ele se curva.
E um projeto da direita cristã internacional no qual se busca fazer a disputa da família, e da ideia de família, como sujeito de direitos.
Para isso foi criado o Observatório da Família, órgão de pesquisa ligado à Secretaria da Família, que também só passou a existir no governo Bolsonaro, e que estabelece parcerias com outros institutos internacionais de defesa da família.
Damares, assim como Bolsonaro, prega que filhos e filhas devam obedecer seus pais de forma militar.
Respeitem a hierarquia, é o que dizem.
Vamos ver o que está por trás disso. Nas palavras de Berenice Bento, pesquisadora do tema.
"As relações privadas são relações de poder. Tanto as agendas LGBTQI+ quanto os múltiplos feminismos colocam em cena outras moralidades. Ter uma filha feminista, ou um filho gay, ou um filho transexual significa, hegemonicamente, uma negação das verdades que foram ensinadas e, supostamente, interiorizadas sem qualquer questionamento.
"Uma socialização primária bem sucedida refere-se exatamente a ausência de crítica ou fissuras aos ensinamentos desta primeira fase de nossas existências. Aquilo que eu digo, na minha posição de mãe/pai, deve ser interiorizado pelo/a filho/a como verdade, tornando-se força regulatória dos desejos.
"Mas os sistemas morais falham. Seu desejo de reprodução esbarra em sujeitos que interrompem sua suposta coerência. É neste momento que instaura-se uma crise dos sistemas de legitimidade das moralidades hegemônicas.
Ter um filho gay significa ter fracassado, portanto.
Mas há uma solução para resolver esse fracasso, que é a retomada do poder da família tradicional.
Trump, Bolsonaro e Damares Alves são alguns dos políticos que defendem essa agenda.
Dentro dela, vidas LGBTQs são desprezíveis. Prefiro um filho morto a um filho gay, disse Bolsonaro. Como vemos, palavras importam. Palavras viram método de gestão de vidas.
Mulheres que queiram se impor a essa ordem devem ser desprezadas ou podem ser eliminadas sem muito custo.
"O fascismo presente nos discursos de Damares se manifesta no desejo expresso da eliminação do outro, daquele que representa uma ameaça ao projeto de sociedade livre de quaisquer marcas da diferença", diz Berenice.
Para ela, cada ministério de Bolsonaro tem a missão de construir e derrotar um inimigo.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos quer eliminar aqueles/as que questionam a ordem natural e bíblica da família heterossexual.
As feministas, portanto, são o inimigo.
Ainda Berenice:
"Quando Damares afirma que 'as feministas são feias', ela recupera o mesmo discurso que vem circulando por longo tempo: feministas não gostam de homens, são sujas, não se depilam. O que está em jogo? A retomada da feminista como figura abjeta, a bruxa, aquela que deve morrer"
Reduzir o feminismo a uma cartilha de decisões de foro íntimo, como raspar ou não as pernas, é recurso antigo que se mostrou eficaz para que as mulheres tentassem se separar da promovida feiura que vinha com a luta.
"Nos processos de lutas e guerras, a produção do inimigo como sujo, violento e irracional são reiterados.
"A construção do inimigo pode estar encarnado na pele do herege, do muçulmano, do palestino ou comunista, mas estes recursos retóricos são elementos estruturantes das guerras contra populações construídas como inimigas.
"O inimigo se constitui como uma figura que não pode produzir nenhuma identificação, processo mediante o qual eu posso, em algum nível, reconhecer-me no outro e, mais importante, desejar ser ele. A ausência completa de identificação é uma porta aberta para todos os tipos de violência", ensina Berenice.
O que Damares faz tem ainda mais camadas de perversão. Sigo com Berenice:
Ao falar de feminismo como uma expressão de mulheres mal-amadas e feias, Damares provoca uma re-incitação da produção diferencial dos femininos. O belo estaria identificado com a ordem, com a moralidade heteronormativa.
A própria ministra se constitui como referência de feminilidade e estabelece uma linha de continuidade com Marcela Temer, Michelle Bolsonaro, mulheres que se apresentam como sinônimo de um feminino limpo, portanto, verdadeiro e legítimo.
Dilma Rousseff e Manuela D'Ávila seriam, ao contrário, as bruxas.
O caos da sociedade explica-se, segundo os cruzados morais, pela negação dessas mulheres em cumprir com os desígnios da natureza feminina.
E se assim agem, não são mulheres.
"Eliminemo-las!" Esta é consigna da Cruzada do Ministério Mulheres, Família e Direitos Humanos.
"As noções de belo e feio não são expressões estéticas esvaziadas de interesses ou reveladores de um gosto individual.
"O belo é o bom, e o feio, o mau. São expressões de moralidades hierarquizadas.
"O feio é identificado com as mulheres que questionam, que se posicionam diante das injustiças e reivindicam um lugar de fala no mundo sem pedir autorização".
Obrigada, professora Berenice Bento.
Damares é tudo de bom, não é mesmo?
A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) descreve Damares nesses termos:
"Ela age conforme as suas convicções religiosas. E isso não quer dizer que o ministério dela não seja laico. O ministério é laico. Só que. as atitudes dela são tomadas a partir de pensamentos cristãos. De empatia, de se colocar no lugar do outro, de não fazer o mal pro próximo, de não fazer para o próximo o que não gostaria que fizesse com ele, enfim. Ela segue todos os parâmetros cristãos".
Onde está exatamente o laico, deputada?
Então Damares se preocupa e se ocupa dos direitos dos fetos, das crianças e das famílias.
A cientista política norte-americana Amy Erica Smith estuda o papel da religião na política brasileira e diz que temas "morais" escolhidos por Damares estão entre os que mais ressoam com o eleitorado.
"Para os evangélicos, a preocupação com o cuidado das crianças, em termos da sexualidade, é importantíssima. Claro, todos se preocupam com a proteção das crianças. Mas dentro do mundo evangélico isso é um assunto que realmente importa, que desperta muita emoção. De todos os assuntos políticos, esse é o que mais mobiliza".
Daí a força da mentira que foi nomeada como kit gay, um aparato que governos do PT teriam planejado distribuir e que continha materiais que faziam "propaganda" da homossexualidade nas escolas.
Damares gosta também de falar da ameaça da ideologia de gênero. Vejamos do que se trata.
Para ela, o destino de uma pessoa é determinado no nascimento: menino veste azul, menina veste rosa, assim ela resumiu a vida.
Mas Damares se apavora com a ideia de pessoas más e perversas se aproximarem de nossas crianças para mudar suas sexualidades.
Vamos fazer uma pausa aqui.
Vocês que estão lendo esse texto conseguem imaginar que alguém, alguma cartilha, algum conjunto de crenças pudesse mudar a sexualidade de vocês?
Sexualidade não se muda. Não existe ideologia de gênero. Esse conceito é falso e mentiroso. É uma ferramenta para criar paranoia e instalar o medo.
Damares atua para reforçar a ideia de que gênero e sexualidade dizem respeito às relações de poder.
Determinam quais identidades de gênero e sexuais têm direito a existência, quais serão objeto de políticas públicas e quais podem morrer.
Poderíamos seguir listando atrocidades ditas e cometidas por Damares, como a mudança na composição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR): ela retirou do conselho 14 representantes do movimento negro e de entidades de esquerda numa tentativa bem sucedida de desarticular a política de direitos humanos.
Tem também a redução de recursos das políticas para mulheres promovida por ela.
Mas o texto ficaria enorme se eu seguisse listando os horrores de Damares.
O que é preciso é saber que é Damares que articula e fideliza a base mais radical do Bolsonaro. Uma base fascista, genocida, opressora e repressora.
Antes de terminar, quero falar de Nilcea Freire, ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Nilceia, que já morreu, era médica, professora, pesquisadora e foi primeira mulher a ser reitora da UERJ.
Foi responsável pela realização da primeira Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que teve como um dos resultados o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Presidiu o Conselho Nacional de Direitos da Mulher e em sua gestão no governo Lula foi criada a "Lei Maria da Penha", o Ligue 180 e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
Durante sua gestão na reitoria da UERJ, de forma pioneira, foi implantado o sistema de cotas para estudantes egressos de escolas públicas e negros. O projeto foi intensamente debatido nos anos seguintes e acabou adotado em outras dezenas de universidades públicas.
Ainda apenas como contexto, deixo aqui outras coisas feitas pelos governos Lula que se relacionam ao tema família: aumento real de salário mínimo, ampliação do acesso à universidade, Estatuto da Igualdade Racial, Bolsa-Família, Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, garantia de crédito para os mais pobres.
Isso sim é cuidar e proteger a família brasileira.