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O Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro obteve a retificação do gênero, para não-binário, na certidão de nascimento de 47 pessoas. A alteração permite que passe a constar no campo sexo a opção ‘não especificado’.
A defensora Mirela Assad, que foi coordenadora do Nudiversis, explica que a iniciativa foi viabilizada junto ao serviço de Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado, que permite a obtenção de sentenças na hora. “É histórico para o Estado, mas também para o Brasil”, avalia.
Um mutirão foi organizado na última sexta-feira, 26, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Manguinhos, na capital fluminense, para formalizar as retificações.
“Considerando a expressiva demanda de solicitações de pessoas não-binárias querendo a sua requalificação, o Nudiversis, junto da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, programou uma grande ação social”, explica a defensora.
Com as certidões alteradas, é possível pedir a mudança nos demais documentos, como RG, CPF, título de eleitor e certidão de casamento. “Inclusive nós fizemos uma cartilha para ajudar essas pessoas com o passo a passo de tudo que elas precisam atualizar”, conta Mirela.
Pessoas não-binárias são aquelas que não se identificam nem como homem nem como mulher. “Acho que com o tempo vem a aceitação, inclusive da linguagem neutra que é tão atacada hoje em dia. A partir do momento que naturalizar no nosso convívio pessoas não-bináries, a gente vai naturalizar se dirigir a essas pessoas respeitosamente pela linguagem neutra. Já vimos alguns infelizes projetos de lei tentando proibir essa linguagem e isso é altamente discriminatório. Não há o que proibir. Eu acho que é uma questão que vai partir pela educação. A gente vai conhecer, vai compreender o que são os não-bináries e eles fazem parte da sociedade”, pontua a defensora.
Poucos casos reconhecidos pela Justiça
“Eu senti que depois dessa audiência consegui nascer. Existir como deveria ser, sem a imposição desse sistema cisgênero que determina quem é homem e quem é mulher”. A declaração é de Fênix da Silva Leite, a primeira pessoa reconhecida como não-binária pelo Judiciário do Estado de Alagoas, em outubro deste ano. Para a advogada Bruna Cristina Santana de Andrade, CEO e cofundadora da startup Bicha da Justiça, o caso não é isolado.
“Já temos casos no Rio de Janeiro, em Santa Catarina e no Piauí, além de outros dois extrajudiciais, realizados diretamente em cartórios do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte”, comenta. A Bicha da Justiça é uma empresa de tecnologia que trabalha com educação sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ nas redes sociais e, também, através de cursos de formação jurídica para empresas e advogados.
Outro pilar da startup é a inclusão jurídica. “Nós conectamos o público LGBT+ com um advogado especializado nas demandas desse grupo. Esses profissionais geralmente passaram pelo nosso processo de formação, o que compõe o terceiro pilar da empresa, que é o da empregabilidade”, explicou a advogada. A CEO informa que a startup atua hoje com um grupo de 40 advogados em todo o País e que mais de 60 profissionais já passaram pela formação oferecida pela Bicha da Justiça.
Bruna de Andrade conta ainda que uma das demandas que mais vêm de pessoas não-binárias é retificação do gênero na certidão de nascimento, mas que ‘a discussão dessa pauta no Judiciário ainda é muito inicial’. Um dos clientes da startup que busca essa correção no documento é o documentarista Bem Medeiros, de 34 anos.
Sobre a identificação como uma pessoa não-binária, Bem explica que foi um processo longo. “Eu acho que eu sempre fui uma criança que atuava em outras performances de gênero. Depois eu me enquadrei um pouco e nos últimos cinco anos eu comecei a me entender melhor. São processos demorados e até você entender se quer ou não ter esse reconhecimento social e judicial é complicado porque não temos muitas referências. Parece que não é possível até você tomar os primeiros passos”. Ele usa tanto o pronome neutro como o pronome masculino.
Bem ainda está no início da tramitação de retificação de gênero na certidão de nascimento e está documentando todo o processo. Ele pretende lançar um documentário. “Tenho filmado os meus encontros com a advogada Bruna de Andrade e pretendo registrar também outras questões como a audiência em si e a busca pela retificação dos outros documentos, por exemplo. Quero encontrar também outras pessoas que estejam passando pelo mesmo processo para ver se as experiências vão se coincidir. O plano do documentário é chegar até a retificação do último documento e acompanhar o processo completo. Então pode ser que leve alguns anos”, explica o documentarista.
Bem Medeiros sobre processo de retificação do gênero para não-binário: “Parece que não é possível até você tomar os primeiros passos”. Foto: acervo pessoal
Outra pessoa que já passou por todo esse processo é a psicóloga Idris Henriques Kawabe, de 27 anos, que usa tanto o pronome neutro como o feminino. “Eu nunca me conformei muito com a estrutura de gênero desde criança, mas nunca me fechei também em nenhuma categoria, até porque não gosto muito de me limitar a nada. Daí chegou um momento que, mesmo eu estando nesse processo há muito tempo, surgiu essa palavra, não-binário, que é uma palavra que eu não lembro muito bem como me foi introduzida, mas foi em cerca de 2012. É uma categoria eu gosto muito porque ela não define nenhum lugar. É um adjetivo em negação, então é uma militância pela liberdade”, conta a profissional de saúde.
Idris, que é natural de São Paulo, mora em Santa Catarina e conseguiu realizar a retificação do seu gênero de nascimento para gênero não-binário com a ajuda da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se formou. Elu (pronome não binário) havia tentado fazer a retificação do seu nome via cartório, mas o órgão só permitia a alteração se o gênero também fosse modificado.
“Eu estava há muito tempo incomodada já com meu nome “morto”, só que fazia muito tempo que eu tentava falar com o meu cartório e recebia a informação que não poderia mudar o meu nome se eu não mudasse também o registro do meu sexo elegido no nascimento. Ficou um tempo nesse impasse. Eu consegui colocar o nome social, mas em todos os outros ambientes era sempre desconfortável. Conheci então o professor Clarindo, do núcleo de práticas jurídicas da UFSC, fomos conversando e no fim conseguimos. Foi meio que uma surpresa”, explica Idris.
O professor Clarindo Epaminondas de Sá Neto conta que o núcleo já desenvolvia um grupo de estudos sobre diversidade antes de Idris pedir ajuda. “Quando chegou essa demanda das pessoas não-binárias, a Idris foi a nossa primeira procura. Começamos a refletir quais seriam os argumentos que poderíamos levantar juridicamente. Descobrimos então que já havia uma decisão no Sudeste. Porém esses processos de retificação de registro de nome ocorrem por segredo de Justiça, então é muito difícil ter acesso aos argumentos que foram utilizados pelas partes. Na verdade, a gente teve que construir uma nova tese aqui e construímos justamente diante dessa demanda que foi apresentada pelu [pronome neutro] Idris”.
Neto explica que a juíza responsável pela decisão favorável também era pesquisadora e que isso foi um ponto positivo para o deferimento. “Na hora de fazer o pedido para a juíza titular da Justiça Estadual de Santa Catarina, Vânia Peterman, nós não tivemos nenhuma dificuldade. Tivemos dificuldade por parte do Ministério Público (MP) que atuou nesse processo e foi contra. O MP afirmava que não existia brechas na lei para que alguém, ao ser registrado, não fosse indicado como gênero masculino ou feminino, de acordo com a sua genitália”.
O professor criticou ainda o Parlamento, que em sua avaliação ‘não se preocupa com as questões ligadas à diversidade’, que acabam sendo criminalizadas através de ações da Justiça. “Nesse caso [do reconhecimento do gênero não-binário], como aconteceu com o casamento em civil igualitário, eu acredito que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai acabar disciplinando a questão, mas eu não acho que isso seja positivo. Todos os direitos que são garantidos à população LGBTQIA+ não são frutos de debate no Parlamento. Quem tem o dever efetivamente constitucional de cuidar dessas sessões e conferir esses direitos é o Poder Legislativo. O Poder Judiciário age diante de uma falha que faz parte do nosso sistema constitucional”.
A promotora de saúde, Vincia Prado, de 24 anos, também tentou realizar a retificação da certidão para gênero não-binário, mas acabou optando por alterar para o gênero feminino. Sua decisão tem a ver com a garantia de direitos futuros. “Eu preferi identificar só com meu gênero feminino, a princípio, e para mim está tudo bem, mas a maior demanda é a de assegurar os direitos civis futuros. Na maioria das vezes existe uma certa barreira sabe, eu sinto isso, mas eu também acredito que existe toda uma questão burocrática jurídica por trás. Eu basicamente aceitei que não podia colocar entendeu? Não tem o que fazer sabe? Ou você briga, e entra no processo judicial gigantesco, ou só muda para masculino ou feminino”, conta Vincia.
Assim como para o documentarista Bem Medeiros, para Vincia o processo de identificação de gênero também foi longo. “Eu me reconheço como uma pessoa trans há muito tempo, desde 2015. Eu me reconheci como travesti e acredito que a travestilidade está dentro do espectro não binário. Eu me sentia muito mais contemplada colocando como gênero não-binário, mas também não me sinto mal por colocar gênero feminino”, afirma a promotora de saúde.
Vincia participa do projeto Garupa, que é comandado pela Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro (CEDS-Rio), que busca a orientação e conscientização de saúde para a população LGBT+.
Vincia Prado participa do projeto Garupa, que busca a orientação e conscientização de saúde para a população LGBTQIA+. Foto: acervo pessoal
Sobre a questão de direitos civis para pessoas não-binárias, a advogada Maria Eduarda Aguiar explica que o processo ainda é muito recente e que a pessoa que não se enquadra na binaridade de gênero ainda precisa ‘brigar por uma série de direitos’. “Na questão de pensionamento, por exemplo, tem casos em que a mulher tem direito e o homem não. E a pessoa não binária? Como é que fica? Na questão de aposentadoria, outro exemplo, como é que fica a pessoa a pessoa não-binária nesse caso? Qual vai ser o regime adotado? Vai ser o relativo a homens ou relativo a mulheres, porque não tem nenhum sistema relativo a pessoas não binárias. A sociedade tem uma série de questões que são segregadas em relação ao gênero e nessas questões eu penso que a pessoa não-binária vai ter certa dificuldade. Vai ser necessário ajuizar ações para que se crie algum tipo de jurisprudência a favor dessas pessoas”.
Maria Eduarda participou da criminalização da LGTBfobia, em junho de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu equipará-la ao crime de racismo. Até à época, os crimes cometidos contra a população LGBTI+, motivados pela orientação sexual ou identidade de gênero, não tinham nenhuma tipificação penal específica no País. Com a aprovação da criminalização, a LGBTfobia passou a ser enquadrada na legislação já existente que define os crimes de racismo.
No último dia 18, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o projeto de lei que equipara os crimes de racismo e injúria racial, o que aumenta a pena e torna a ofensa por raça, cor e etnia crimes imprescritíveis e inafiançáveis. Como a LGTBfobia se enquadra dentro da legislação de crimes de racismo, a mudança também vale para estes crimes. A pena passaria de 1 a 3 anos para 2 a 5 anos de reclusão e multa. O projeto segue para a Câmara dos Deputados.
O psicanalista e liderança do Cidadania no Senado Federal, Eliseu Neto, também fez parte deste processo e foi um dos responsáveis pelo texto do projeto de lei que criminalizou a LGBTfobia no Estado do Rio de Janeiro. Para ele o Brasil é um dos países com mais proteção jurídica à população LGBT+.
“Quando o STF entendeu que a LGBTfobia é racismo social, o entendimento de racismo foi modificado. Legalmente o Brasil é um dos países com maior arcabouço de proteção para a população LGBT+. Nós conseguimos a criminalização, o direito de casar, a adoção, a retificação do nome social sem necessidade de psicólogo e a doação de sangue, por exemplo. Isso nos coloca como pioneiros no mundo. Houve um avanço social-cultural muito grande nos últimos dez anos e isso é inegável”, explica o parlamentar.