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César Thiago do Carmo Alves*
Santo Tomás de Aquino (+1274) ao escrever a Suma teológica, já nas primeiras questões da primeira parte, afirma que o assunto da teologia é Deus e todo o mais que se relaciona com Ele. Com isso, fica evidente que nenhum tema pode escapar do pensar teológico, haja vista que toda realidade, de algum modo, tem relação com Deus. Uma tarefa irrenunciável do fazer teologia consiste em evidenciar todas as realidades à luz do dado da Revelação.
Inúmeras questões estão na pauta do dia. Essas questões, indubitavelmente, interpelam a teologia. Nesse breve artigo, buscaremos apontar algumas dessas interpelações, conscientes de que outras tantas mais também se descortinam no horizonte.
A ecologia é um assunto flagrante no palco das discussões mundiais. Recentemente assistimos a realização da COP 26. Entre os destaques, líderes de mais de 120 países, que representam cerca de 90% das florestas do mundo se comprometeram a conter e reverter o desmatamento até 2030. Houve promessa de redução de metano, liderada pelos Estados Unidos e União Europeia. Mais de 100 países concordaram em reduzir emissões de gás de efeito estufa até 2030. Grandes usuários de carvão como Polônia, Vietnã e Chile, concordaram em abandonar o minério, um dos maiores geradores de emissão de carbono. Aproximadamente 500 empresas de serviços financeiros assumiram o compromisso de levantar 130 trilhões de dólares para alcançar as metas do Acordo de Paris. Isso inclui limitar o aquecimento global a 1.5 grau Celsius. No caso brasileiro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), anunciou que a taxa de desmatamento na Amazônia Legal Brasileira teve um aumento de 21,97% em um ano. É a maior taxa em 15 anos. Isso revela a importância e a necessidade do debate da pauta ecológica. Essa pauta não pode ficar alheia à teologia. Afinal, o planeta terra é a nossa casa comum. Tudo está interligado.
Papa Francisco publicou no dia 24 de maio de 2015, à época Solenidade de Pentecostes, a carta encíclica Laudato Si. Nela, o bispo de Roma, propõe uma ecologia integral que inclui as dimensões humanas e sociais. O pano de fundo dessa proposta é a escuta do evangelho da criação para que se viva na justiça. Em sua exposição, Francisco afirma desde a reflexão das narrações da criação presentes no livro Gênesis, que a relação originária harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito, quando se distorceu o mandato de dominar a terra (LS 66). Apresenta São Francisco como modelo de sanação dessa ruptura. Portanto, no campo ecológico não é possível pensar teologicamente sem considerar a dimensão da justiça como elemento fundamental para uma ecologia integral e, portanto, de uma vida no planeta com qualidade.
Os direitos humanos sem dúvidas estão no rol das interpelações teológicas. Isso se justifica de pronto pelos evangelhos. Ao lermos a Boa Notícia, podemos atestar que Jesus colocou o ser humano como parte principal de sua atividade. Não teria lógica anunciar o Reino de Deus desvencilhado de tantos apelos que eram feitos. A dignidade da pessoa humana era para Jesus algo inegociável. Perícopes como a da mulher adultera (Jo 8,1-11) e as de curas, inclusive realizadas nos sábados ( Lc 6,6-11) atestam a importância para o Mestre de Nazaré da dignidade humana. Essa dignidade independe do fato ou ato cometido pela pessoa, por mais que reprovável que fosse para a sociedade à época.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugurou no título II os direitos e garantias fundamentais, sendo o art. 5º os direitos e deveres individuais e coletivos e estabelecido como cláusula pétrea, por força do art. 60, § 4, IV os direitos e garantias individuais. Acontece que nem sempre esses direitos são garantidos. A título de exemplo, o inciso XLIX, do art. 5º da CRFB/88 dispõe que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Ora, não é novidade para ninguém como funciona o nosso sistema carcerário. Literalmente um sistema falido e que não cumpre a função da pena que é a ressocialização. Ademais, são verdadeiras masmorras. Celas super lotadas. Agora em 2021, em todo país temos 687.546 pessoas presas, enquanto o sistema penitenciário nacional tem 440.530 vagas. Como falar de integridade nesse cenário? Curiosamente, parte da parcela da sociedade acredita que a solução seja realmente prender para se livrar dessas pessoas que cometeram delitos. Vale lembrar que grande porcentagem da população carcerária são de presos provisórios, uma medida cautelar. Isso significa que ainda não tiveram uma condenação transitado em julgado. Portanto, enquanto isso não acontecer são considerados inocentes, pelo princípio da presunção de inocência. Obviamente, situações como essas interpelam a teologia. “Estive presos e viestes ver-me” (Mt 25,36).
Um terceiro tema de interpelação teológica é a comunidade LGBTIAP+. Anualmente a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) publica o Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil. Em 2020 os dados foram de 175 assassinatos de pessoas trans, sendo todas mulheres transexuais e travestis. Destes, encontramos notícias de que 18% dos suspeitos eram pessoas conhecidas ou que mantinham algum relacionamento com as vítimas. 72% não tinham relação ou não conheciam a vítima.
O Brasil é desde 2008 o país que mais assina pessoas trans no mundo. A maior concentração dos assassinatos foi contabilizado na região nordeste, com 75 assassinatos (43% dos casos), seguido da Região Sudeste com 59, Sul com 14, Norte com 13 casos e Centro-Oeste com 12 assassinatos. Fazendo o um recorte étnico-racial, 82% eram pessoas negras ou pardas. A idade média das vítimas é de 29,5 anos. A menina transexual mais nova a ser assassinada tinha, em 2020, apenas 15 anos de idade. 72% dos casos foram direcionados às profissionais do sexo. 90% da população travesti e transexual utiliza a prostituição como fonte de renda. Apenas 4% tem um emprego formal. Uma das justificativas do auto índice de serem profissionais do sexo se deve ao fato de pessoas travestis e transexuais utilizarem a prostituição como meio de subsistência, devido à baixa escolaridade provocada pela exclusão escolar, gerando dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal. “Cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental”.Fica patente que são pessoas jovens, pretas, pobres e trans que em sua maioria são exterminadas. Quanto ao modo de execução, a maioria dos casos foram com requintes de crueldades como uso excessivo de violência, esquartejamentos, afogamentos e outras formas brutais de violência. Além disso, estima-se que a idade média em que pessoas transexuais são expulsas de casa é de 13 anos de idade.
É simplesmente contraditório professar a fé num Deus da Vida e elaborar um discurso que em nome de Deus exclua essas pessoas. Com leitura fundamentalista dos textos bíblicos, sem lançar mão dos métodos teológicos, como o histórico-crítico, condenam quem não se encaixa dentro do padrão hetero-cis-branco-normativo. A chamada ideologia de gênero nada mais é do que um modo de não acolhida do diferente e de tutelar o querer de Deus à luz do machismo patriarcal misógino europeu.
Outros tantos temas de cabal importância como as migrações, o ecumenismo e diálogo interreligioso, a sinodalidade eclesial etc também são assuntos de interpelações para a teologia. No fim, o que importa é que o pensar teológico não se esquiva de nenhuma temática. Não existe um Index Prohibitorum para o fazer teologia.
*César Thiago do Carmo Alves é doutor e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). É graduado em Filosofia pelo ISTA e Teologia pela FAJE. Possui especialização em Psicologia da Educação pela PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Teologia e diversidade afetivo-sexual da FAJE
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