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“O país precisa resolver o problema de homicídio das populações ou dos grupos vulneráveis como LGBTs, indígenas, jovens negros, mulheres e outras populações que são as que mais morrem neste país."
Assim começava a fala enfática de Fernanda Benvenutty, em 2015, no programa Dialoga Brasil, uma convocação pública para que o Estado brasileiro assumisse a responsabilidade pelo direito à vida das populações historicamente negligenciadas. Travesti, nordestina, enfermeira, sambista e militante incansável, Fernanda falou com a autoridade de quem conhecia na pele a urgência de sobreviver e lutar.
Junho é o mês do orgulho LGBTQIAP+, um período marcado por festas, marchas e manifestações, mas também por memória e reivindicação política. É nesse contexto que relembrar Fernanda Benvenutty é resgatar uma história que não se limita a conquistas individuais. Nascida em 1962, na cidade paraibana de Remígio, Fernanda teve uma trajetória marcada por múltiplas violências e desafios. Ainda na adolescência, foi expulsa de casa por ser travesti e se apaixonar por rapazes. Acolhida pelo Circo Babilônia, iniciou sua jornada artística como palhaça, uma experiência que daria o tom irreverente e combativo de sua militância nos anos seguintes.
Residindo em João Pessoa, ela conciliava o trabalho de empregada doméstica com os estudos no curso técnico de enfermagem. Mais tarde, atuaria como parteira na Maternidade Cândida Vargas, onde ajudou a trazer ao mundo muitos paraibanos. Vestida de branco e com sua inseparável maleta de enfermeira, era presença constante na parada de ônibus da Praça da Lagoa.
Fernanda Benvenutty transformou o corpo travesti em plataforma de ação política. Em 2002, fundou a Astrapa (Associação das Travestis da Paraíba), em um momento em que pouco se falava sobre identidade de gênero nos espaços institucionais. A trajetória dela no Movimento Espírito Lilás (MEL) foi marcada pelo desejo de institucionalizar a luta: queria fundar uma associação, escrever um livro e ocupar cargos públicos.
Foi candidata a vereadora (2004 e 2008) e a deputada estadual em 2010 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quando obteve sua votação mais expressiva: 2.782 votos. Não se elegeu, mas rompeu barreiras. Ao contrário de campanhas baseadas em estigmas, queria ser vista como qualquer outra candidata, ainda que o “diferente” fosse ser travesti.
Em 2004, Fernanda foi uma das protagonistas da campanha nacional “Travesti e Respeito”, iniciativa que deu origem ao Dia da Visibilidade Trans e a políticas públicas de prevenção ao HIV/AIDS. Participou de comissões em Brasília, discursou na Câmara dos Deputados, foi conselheira nacional de saúde e cotada para assumir a Coordenação Nacional LGBT.
Na Paraíba, ajudou a idealizar o primeiro Centro de Referência LGBT do estado, que funcionou de 2005 a 2008. A experiência foi posteriormente ampliada e institucionalizada, dando origem ao atual Espaço LGBT da Paraíba.
Na cultura, sua presença também foi inapagável. Fundadora das escolas de samba Império do Samba e Unidos do Roger, costurava fantasias, organizava desfiles e fazia do Carnaval uma extensão de sua luta. No último Carnaval antes da pandemia, a Unidos do Roger venceu com o enredo “Abram Alas que Ela Vai Passar”, homenagem à sua vida. Fernanda morreu dias antes de seu aniversário, em fevereiro de 2020, vítima de um câncer no estômago.
O futuro leva o nome dela
Se o Brasil ainda engatinha na formulação de políticas públicas para a população trans e começa, na hodiernidade, a eleger suas primeiras vereadoras e deputadas travestis, é porque histórias como a de Fernanda Benvenutty abriram caminhos e ensinaram os traquejos necessários para que essas existências ocupem hoje o cenário político nacional.
Após sua morte dela, surgiu em João Pessoa a Casa das Benvenutty, um coletivo político-cultural, em diálogo com a Ballroom, fundado por travestis da cidade. A decisão de criar o grupo foi tomada entre refeições no restaurante universitário, quando Ayira Benvenutty e Gabi Benvenutty, duas jovens travestis, decidiram viver aquilo que sonhavam juntas.
“Todo mundo que conheceu Fernanda já deve ter levado um tapa na orelha. Era uma militância do dia a dia, da travesti que sai pra estudar, que mete as caras e sustenta as tiradas de transfobia. A irreverência dela é o que a gente leva hoje”, conta Ayira.
A Casa das Benvenutty carrega o legado de Fernanda com irreverência e firmeza, desafiando as normas que empurram corpos dissidentes para a margem. Em 2020, Gabriella Kollontai Benvenutty lançou sua candidatura à vereadora em João Pessoa. Naquele ano, apenas uma mulher foi eleita para a Câmara Municipal. Mesmo assim, Gabriella conquistou 3.462 votos, uma marca expressiva numa capital conservadora. Sua campanha rompeu silêncios e ocupou os espaços populares com potência: travestis de salto alto invadindo feiras, distribuindo panfletos, jogando calcinhas para o alto e, sobretudo, discutindo projeto político com quem o Estado costuma esquecer.
“Foi uma campanha com a cara do povo. A juventude negra periférica no meio do mundo dizendo que política também é nossa. Isso é revolucionário. Um projeto de Estado que acolhe pessoas trans é um projeto pronto pra acolher qualquer pessoa”, resume Ayira.
Fernanda não está mais entre nós, mas sua força vive nas ações que brotam da sua história. Cada voto conquistado por uma travesti na política, cada política pública voltada para corpos como o dela no Nordeste e no Brasil. Tudo isso carrega o sopro de uma mulher que ousou sonhar alto.