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Quando C.M., de 26 anos, ouviu uma das primeiras medidas anunciadas pelo presidente Donald Trump no dia de seu retorno à Casa Branca, sua indignação foi acompanhada por uma inusitada sensação de déja vu. Por decreto, horas após tomar posse, o republicano determinara que o governo federal só reconheceria dois gêneros, masculino e feminino. Como havia se graduado em Estudos Russos, investigou na universidade a perseguição a pessoas LGBTQIA+ na Rússia de Vladimir Putin e perdeu o prumo com a afirmação bizarra, em 2007, do ainda hoje líder da República Russa da Chechênia, Ramzan Kadyrov, de que eram falaciosas as denúncias de um violento expurgo de gays, pois "aqui não há homossexuais".
— Era algo distante. Jamais imaginei que testemunharia meu governo negar minha existência. Foi como se algo tivesse terminado, uma espécie de fim — contou ao GLOBO.
C.M. vive em Somerville, na região metropolitana de Boston. Em seu círculo social, aumentou o número de pessoas que, como o jovem não-binário, aceleraram a decisão de fazer mamoplastia masculinizadora por temerem a repetição, com os hospitais, do assalto ideológico do novo governo sobre as universidades. O fim de parcerias com Washington asfixiaria clínicas privadas país afora.
Do outro lado do país, no Oregon, a família B. vive a mesma correria para a cirurgia e teme pela violência contra o filho transgênero de 21 anos, que se mudará do estado no mês que vem para cursar universidade. Ele lamenta não ter tirado a carteira de motorista em dezembro com o nome escolhido e teme não poder dirigir em uma unidade da federação de maioria republicana. Viajar para fora do país virou um enorme ponto de interrogação.
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— Acompanhamos preocupados a propaganda antitrans de Trump no ano passado, mas confesso que fomos pegos de surpresa com a velocidade da transformação do discurso em realidade — revela ao GLOBO a mãe do futuro universitário.
A rede CBS apurou que a campanha de Trump gastou US$ 19 milhões (R$ 109 milhões) em duas peças de propaganda na TV com ataques aos direitos trans, repetidas 55 mil vezes nos sete estados mais decisivos, da primeira semana de outubro até o dia da eleição, em novembro. Uma tratava da defesa da então vice-presidente, Kamala Harris, da detenção de presas trans em presídios femininos. A outra condenava a participação de atletas trans em competições femininas em escolas e universidades.
De acordo com a TransLash Media, durante toda a campanha os republicanos gastaram US$ 215 milhões (R$ 1,2 bilhão) em peças e ações antitrans. Pesquisas de boca de urna analisados pela organização jornalística voltada para o universo trans mostram que a estratégia levou mais pessoas às urnas, especialmente jovens entre 19 e 35 anos que não votam regularmente. Eles se mostraram cruciais em pleitos decididos por uma diferença de menos de 30 mil votos, como em Wisconsin.
O golpe foi sentido no lado democrata. Ainda carentes de mensagem unificada de oposição a Trump, o partido viu vozes importantes como a do governador da Califórnia, Gavin Newsom, tomarem posição contrária à participação de pessoas trans em competições femininas, o que ele passou a classificar como algo “profundamente injusto”.
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Para a esquerda democrata e grupos de defesa dos direitos civis, chama a atenção o peso dado ao tema quando a população trans nos EUA não chega a 1% do total em um universo estimado em 1,6 milhão de pessoas, e o número de atletas entre elas é ainda mais ínfimo.
Mas contam-se nos dedos as vozes da oposição, aponta a catedrática da Universidade de Michigan, Shanna Kattari, que “deram a dimensão devida a episódios recentes de forte simbolismo” — entre eles o compartilhamento, esta semana, por Trump, de um artigo sobre sua política antitrans nas Forças Armadas ilustrado pelo triângulo rosa, símbolo nazista para identificar gays nos campos de concentração.
Kattari afirmou ao GLOBO que se vive hoje nos EUA uma “guerra total contra as pessoas trans” pelo governo Trump 2.0, calcada “no discurso fantasmagórico do medo”, que bate de frente com a ciência e defende, “cada vez menos disfarçadamente”, a eliminação de um grupo minoritário, “com ecos nazi-fascistas”.
— As políticas antitrans e antiqueer já haviam sido postas em prática no Trump 1.0, entre elas a tentativa fracassada de nos excluir das Forças Armadas — diz Kattari, diretora do Coletivo para Pesquisas de Sexualidade, Gênero e Relações Humanas. — Pois elas voltaram mais sofisticadas, alimentadas pelo radicalismo detectado no movimento conservador global neste período, inclusive no Brasil. Nós somos, neste momento, a bucha de canhão, mas essa investida ideológica também inclui o combate a ações de reparação racial e aos direitos reprodutivos das mulheres.
A brasileira Sonia Correia concorda. A feminista participa de um grupo de pesquisadores nas Américas que acaba de iniciar um estudo sobre os efeitos da cruzada antitrans de Trump no Brasil, Argentina, Colômbia e Peru. Ela enfatiza a importância, inclusive para uma reação organizada ao avanço sobre os direitos das pessoas trans, de ler o ataque trumpista para além da estratégia eleitoral, traduzindo-o como uma etapa de agenda extremista muito mais ampla.
— E o Brasil, desde 2013, quando o deputado Marco Feliciano assumiu a presidência da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara, com posições contra o direito das pessoas LGBTQIA+ e o aborto, foi um laboratório para a direita americana, não o oposto — aponta.
Bruna Benevides, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, vê no Trump 2.0 a tentativa de “institucionalização da transfobia” nos EUA, com impacto no discurso público brasileiro às vésperas das eleições presidenciais. Mas pondera que, “apesar do recuo na implementação de políticas para os trans do governo Lula” e da revisão na esquerda do protagonismo das chamadas pautas identitárias, é pouco provável que medidas similares sejam aprovadas aqui:
— Projetos sobre uso de banheiros e esportes têm sido derrubados, reconhecidos como inconstitucionais, o que mostra o avanço e a organização da luta trans no Brasil. No entanto, a comunidade não pode lutar só, nem depender do Judiciário. Aliados precisam se posicionar, sair do armário e assumir a defesa ativa dos direitos trans.
DECRETOS ASSINADOS DESDE JANEIRO
- Invisibilidade: Com a existência das pessoas trans eliminada pelo Executivo, chegam ao fim todos os projetos federais voltados para a comunidade e as investigações de denúncias de discriminação por gênero no funcionalismo.
- Passaportes: Não são mais aceitos pedidos para mudança de gênero no documento, nem o uso do X para marcar o não binarismo. Só são considerados válidos documentos com fotos que correspondam ao “sexo de nascença”.
- Prisões: Mulheres trans encarceradas são transferidas para presídios masculinos e deixam de receber cuidados médicos específicos. Não será mais divulgado o número de pessoas trans no sistema carcerário.
- Militares: Decreto determina que ser trans “não se encaixa com o estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado do soldado”. Até o fim do mês, serão anunciadas diretrizes para o banimento de militares trans das Forças Armadas.
- Saúde: Foi suspenso o uso de verbas públicas federais para cuidados médicos relacionados à afirmação de gênero de jovens trans menores de 19 anos, entre eles bloqueadores de puberdade e terapia hormonal.
- Educação: Cartilha federal de apoio a estudantes trans é descontinuada, assim como o uso de fundos públicos para o grupo. Cai a exigência de usar nas escolas nomes que correspondam à identidade de gênero de alunos trans.