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Vestido, Reptilia. Brincos, Paola Vilas; colar e anéis, tudo Vehr; pulseira, Vivara; sapatos, Alexandre Birman (Foto: Karla Brights.Styling: Zazá Pecego. Beleza: Magô Tonhon. Agradecimentos: Espaço Utomi)
Desde sua entrada histórica em 2018 na Assembleia Legislativa de São Paulo como primeira travesti eleita, Erica Malunguinho voltou seu olhar para o cuidado de mulheres, pessoas LGBTQIA+, populações quilombolas, indígenas e para o povo de terreiro, com o objetivo de romper com o racismo religioso por meio de emendas parlamentares. Algumas conquistas tornaram-se marcas da gestão, como permitir que mulheres trans sejam atendidas pelas Delegacias da Mulher, a gratuidade do Bom Prato no período da pandemia de Covid-19 e a derrubada da PL 504, aquela que pretendia tirar pessoas LGBTQIA+ de publicidades televisivas, alegando que seria uma má influência.
A política sempre esteve presente na vida da deputada. Sua avó frequentava manifestações e sua mãe, a filha escolhida para estudar, seguiu o exemplo, zelando pela comunidade. “Houve um tempo em que ela abriu uma escola no bairro para ensinar crianças”, relembra. “Mais tarde, eu a via trabalhar muito e, em vez de voltar para casa, ela ia atender o bairro. Não mais como professora, mas como enfermeira. Não cobrava nada e eu vivia grudada nela, vendo tudo: aplicar injeção, conferir se as pessoas estão tomando as medicações corretamente. Responsabilidade, sabe?”

Ambos os vestidos, Teodora Oshima. Brincos e pulseira, ambos Vivara (Foto: Karla Brights.Styling: Zazá Pecego. Beleza: Magô Tonhon. Agradecimentos: Espaço Utomi)
Além dessa base familiar, Malunguinho cresceu em Recife. Um território que ela mesma define como centro de experiências artísticas poderosas: maracatu, frevo, coco e Carnaval. “Eu fui estabelecendo relações a partir de um tecido cultural muito rico e isto se torna uma bandeira política”, diz. Mestre em estética e história da arte pela USP, Erica abriu, em 2016, o Aparelha Luzia, quilombo urbano no centro de São Paulo que funciona como um ponto de fortalecimento e reconhecimento das mais diversas culturas e conhecimentos. Agora, comemorando seus 40 anos, a deputada revisita, em entrevista exclusiva à Glamour, seus feitos e mostra um futuro possível através da arte:
Pensando na atuação do Aparelha Luzia, onde a arte e a política se encontram? Na verdade, elas nunca estiveram separadas. O pressuposto da política é agir na pólis. Tudo o que movimenta, participa, interfere na coletividade é político. A arte faz parte desse conjunto. As sociedades antigas africanas e ameríndias tratam a questão da imagem, dança, música e materialidade como parte de suas existências. As pessoas se expandem no movimento da dança, gestualidade, nos artefatos, nas pinturas corporais e vestuários. É arte. E nunca se separou também da noção de coletividade, porque um vestuário simboliza um status social que comunica o papel político e social que a pessoa tem. Não tem como a arte estar dissociada da política.

Camisa, Handred; blazer Misci. Brincos, Paola Vilas; earcuff Vivara (Foto: Karla Brights.Styling: Zazá Pecego. Beleza: Magô Tonhon. Agradecimentos: Espaço Utomi)
E qual é a potência de reconhecer este vínculo na contemporaneidade? Ele diz respeito à consciência dos sujeitos e sujeitas sociais que somos. Tem uma dimensão do deslocamento da individualidade para a coletividade. Não dá mais para pensar em produzir artisticamente a partir de uma relação egoica e de uma reflexão solitária. Somos seres sociais e temos que nos implicar efetivamente com nosso tempo. E a arte não precisa ser manifesto apenas, mas ela não pode estar descolada das humanidades, porque essa consciência está a todo momento dialogando com espectadores e espectadoras.
Considerando a retirada sistemática de direitos do governo e a discussão sobre o genocídio da população negra, Qual a sua leitura sobre o que está acontecendo agora no Brasil? Eu vejo que nós estamos dentro de uma continuidade de relações de poder já existentes, que ganharam dimensões e proporções maiores. A perversidade do racismo, da misoginia, da LGBTfobia sempre esteve presente. Esse é um projeto de sociedade que foi construído para eliminação de certos grupos de pessoas. O que estamos vivendo hoje é a continuidade de um pacto narcísico da branquitude e da masculinidade que não foi rompido completamente, e ecoa em todos os poderes políticos, principalmente no poder central da presidência da República.

Brincos, Vivara (Foto: Karla Brights.Styling: Zazá Pecego. Beleza: Magô Tonhon. Agradecimentos: Espaço Utomi)
Qual tem sido o maior desafio da sua gestão? O maior desafio é pedagogizar. Provar e ensinar que pessoas LGBTQIA+ e pessoas negras não estão intercedendo por si como uma pauta exclusiva e restrita às nossas questões. Quando falo de pessoas negras, pessoas trans, estou falando de acesso à saúde, transporte público, educação, estou desvelando a estrutura, os problemas de ordem estrutural...
Qual você considera seu maior legado? A esperança, a fé. O que eu contribuo é apresentar que as coisas são possíveis. Mais do que o que eu faço concretamente, é importante essa motivação, este sentimento de esperança, do possível, de ter fé na vida e nas coisas.
Qual forma de expressão mais radical, mais antifascista e anticapitalista que nós, enquanto sociedade civil, poderíamos assumir? A responsabilidade coletiva: esse é o gesto mais radical que podemos ter. Na prática, isso significa recuperar valores que estão presentes desde a Antiguidade, de cooperação. As cozinhas solidárias que surgiram na pandemia são incríveis, o próprio MST, importantíssimo e fundamental. Mas as práticas revolucionárias que a gente tem para pensar o futuro em termos de sustentabilidade, economia criativa, com a terra, com a natureza, estão presente nas sociedades antigas. É entender o ciclo produtivo e nossa interferência no meio ambiente. Olhar o outro é olhar o todo.