Entre lutas e descobertas: pessoas transexuais relatam vivências

8 months ago 254
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MANAUS (AM) – “Não gostava do meu corpo”, “Não gostava de me ver no espelho”, “Compreendi minha identidade como transfeminina” e “Elas [travestis] estiveram na linha de frente da luta por direitos”. As declarações são de pessoas transexuais, entrevistadas pela CENARIUM, e relatam vivências, desafios e percepções sobre a transexualidade, cuja identidade de gênero é diferente do sexo atribuído ao nascer.

Nesta quarta-feira, 29, completa 21 anos que o ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, promovida pelo Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, ficou marcado como um dia para dar luz à Visibilidade Trans, celebrada anualmente no dia 29 de janeiro. Desde então, a data representa um marco para reforçar a luta por direitos.

Nos últimos 20 anos, a população trans no Brasil obteve conquistas significativas no reconhecimento de direitos. Entre os avanços, destacam-se a permissão para o uso do nome social em documentos oficiais e concursos públicos, a requalificação civil — que possibilita a alteração de gênero na certidão de nascimento e outros registros — e o acesso à cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Pessoa trans protesta em via pública (Reprodução/Giorgia Prates)

A nível mundial, outro avanço significativo para essa população ocorreu em 2019, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transsexualidade da classificação de transtornos mentais, o que representou uma vitória histórica para a comunidade.

‘Sempre me senti um homem estranho’

O psicólogo Victor Hugo Pereira Mendes se descobriu como um homem trans por volta dos 20 anos, quando conheceu a história do escritor João Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação no Brasil, que se tornou símbolo na defesa pelos direitos da população transexual. Ao ler sobre Nery, Mendes conseguiu se enxergar.

“Desde pequeno, sempre me senti um homem ‘estranho’, mas até os meus 20 anos, ainda performava uma feminilidade, vivendo como mulher perante a sociedade. Isso acontecia porque eu não sabia que poderia ser um homem trans, não tinha nenhum tipo de referência sobre transexualidade, especialmente masculina. Apesar de viver momentos felizes, também passei por períodos de intensa disforia. Não entendia por que não gostava do meu corpo ou por que não queria mais usar as roupas que usava”, conta o psicólogo.

Victor Hugo Pereira Mendes atua na área da assistência social no município de Rio Preto da Eva (AM) (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Para atuar na área de Psicologia, Victor Hugo conta que precisou passar por pequenas formas de transfobia, principalmente na busca por emprego, além de micro agressões diárias, que se acumulavam e o deixavam em profundo desconforto. Atualmente, ele trabalha no município de Rio Preto da Eva (distante 57 quilômetros de Manaus), onde atua na área da assistência social com situações de violação de direitos, como abuso sexual, violência doméstica, negligência contra idosos, mulheres e pessoas LGBTQIAPN+, incluindo casos de transfobia e homofobia, pessoas em situação de rua e outros casos que envolvam qualquer tipo de violação de direitos.

“Um episódio muito marcante, para mim, aconteceu durante um processo seletivo para trabalhar em um presídio, que seria meu primeiro emprego após me formar. Na época, eu ainda não havia realizado a mastectomia [cirurgia de retirada da mama] e utilizava um binder [faixa compressora que usava para disfarçar o volume dos seios]. Ao chegar para a entrevista, passei pelo procedimento de revista, obrigatório para entrar no presídio, ao sentirem a faixa na região do meu peitoral, pediram que eu explicasse o motivo de estar usando aquilo. Foi um momento difícil e embaraçoso”, disse Victor Hugo.

Sobre a relação dele com a família, o psicólogo explica que atualmente tem uma boa relação mas que nem sempre foi assim, principalmente para a mãe, a tia e a avó, que são as pessoas mais próximas dele desde a infância.

“Cheguei a enfrentar crises de ansiedade durante essa fase, marcada por conflitos e incompreensão dentro do ambiente familiar. Acredito que levou dos meus 20 até os meus 23 ou 24 anos para que minha família começasse a entender o que estava acontecendo. Costumo dizer que, assim como eu, minha família também precisou ‘transicionar’. Foram cerca de três anos até que eles realmente compreendessem quem eu era”, explicou.

Com o tempo, a família de Victor passou a respeitar o nome, os pronomes, a chama-lo de “ele/dele” e a me reconhece-lo pelo atual nome.

‘Quando eu me assumi, me senti liberta’

A técnica de Enfermagem Karla Eshiley conta que aos 15 anos já não conseguia mais esconder quem era de verdade e, então, assumiu para a família como um homem gay. Depois de alguns meses, passou a se identificar como travesti.

“Desde que eu tinha uns 5 anos de idade, sempre me senti diferente dos outros meninos, não me sentia confortável em participar de brincadeiras de meninos. Aos 10 anos me sentia muito desconfortável na escola, na hora da educação física […] Nessa mesma idade, eu não gostava de me ver no espelho, quando o meu pai me vestia de com roupas masculinas, me sentia como se eu estivesse suja, cheia de lama, eu me olhava no espelho e não conseguia me ver, era uma sensação muita estranha. Quando eu me assumi, naquele momento, me senti liberta, encontrei a felicidade”, conta Eshiley.

A técnica de Enfermagem Karla Eshiley (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Karla relata que, hoje, tem uma boa convivência com a família, mas nem sempre foi assim. Quando o processo de identificação começou, ela e a mãe ficaram sem se falar. Já o pai, parou de falar com ela por mais de 20 anos. Hoje, a profissional da saúde conquistou o respeito da família.

“Atualmente, estou trabalhando em um centro de acolhimento para ex-moradores de rua, onde exerço a função de cuidadora social. Minha família tem muito orgulho de mim por eu ter saído do mundo da prostituição, das esquinas, das drogas, por ter parado de beber e de cheirar cocaína. Hoje, trabalho com ex-moradores de rua, participo de associações, rodas de conversa e sou exemplo para muitas pessoas. Sinto muito orgulho de mim mesma”, disse.

Karla Eshiley (formanda), com a mãe, a irmã e a sobrinha, na formatura do curso técnico em Enfermagem (Reprodução/Arquivo Pessoal)

A técnica em Enfermagem faz parte da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram), uma organização que luta pelos direitos da população LGTBQIAPN+, com foco na população trans.

“Nós, pessoas trans, existimos e somos seres humanos como qualquer outro, independente da orientação sexual ou da identidade de gênero, de cor ou raça, todos somos iguais aos olhos de Deus. Nós, pessoas trans, lutamos pelos nossos direitos à educação, à saúde, à dignidade, à inclusão e à diversidade. Não queremos ser melhor que ninguém, só queremos respeito”, concluiu.

‘Travesti é resistência política, econômica e social’

Yamilla Manicongo é uma travesti negra, indígena, multiartista, performer e empreendedora, que encontrou na arte uma forma de se expressar e se descobrir. Ela tem ressignificado a travestilidade à maneira dela, transformando-a em um símbolo de força e resistência.

“Percebi que não me encaixava na binaridade de gênero imposta pela cisnormatividade. Eu me via fora disso, me reconhecia em uma não-binariedade. À medida em que convivia com outras pessoas, me questionava e me identificava com as vivências trans, compreendi minha identidade como transfeminina. A identidade travesti, por sua vez, eu resgato das minhas ancestrais. Por ser um termo periférico que, para muitos, é considerado pejorativo, mas para mim representa resistência política, econômica e social”, ressalta Manicongo.

Yamilla Manicongo é uma travesti negra, indígena, multiartista, performer e empreendedora (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Em 2024, Yamilla participou de um curso de artesanato promovido pela Assotram e aprendeu a criar biojoias, sabonetes e peças de biscuit. Na capacitação, ela enxergou uma oportunidade de gerar renda e de expressar sua própria estética. Assim nasceu a “MANÍÍ Biojoias”, cujo nome Maníí vem da língua kikongo e significa realeza. Em março deste ano, a marca completará um ano de existência.

“Inicialmente, meu objetivo era não passar fome e garantir alguma renda. No entanto, logo enfrentei grandes desafios relacionados ao gerenciamento. Eu era a única pessoa responsável por tudo: compra de materiais, controle do caixa e administração-geral, mas não sabia como lidar com essas demandas. Desde então, venho fazendo cursos de empreendedorismo para melhorar a gestão, alavancar minha marca e transformar a MANÍÍ em um negócio rentável e sustentável”, afirma a empreendedora.

Yamilla Manicongo tem uma loja de biojóias, a MANÍÍ Biojóias” (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Para o Dia da Visibilidade Trans, Yamilla deixa uma mensagem de apoio e reflexão: “Fiquem próximos de pessoas que te elevem, que te façam bem. Conheçam com quem vocês trocam, porque nem sempre é confiável. Não deixe ser usada(o/e), confie no processo, não achem que possam dar conta de tudo. Cuidem da saúde mental e física. Desejo sucesso e prosperidade trans”.

Luta por direitos

“Eu penso que no dia 29 de janeiro a gente precisa enfatizar quem esteve à frente de toda essa luta, que foram as travestis”, reflete a representante da Assotram Melissa Castro sobre o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Melissa ressalta que as mulheres trans e travestis enfrentam taxas alarmantes de violência, principalmente as mulheres negras, periféricas e em situação de prostituição.

“Se analisarmos a história das travestis no Brasil, perceberemos que, desde sempre, elas estiveram na linha de frente da luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, no País, no mundo e, muitas vezes à margem da sociedade. Vale lembrar que foram essas mulheres, em sua maioria prostitutas, que abriram caminhos e enfrentaram preconceitos para garantir avanços importantes para a comunidade”, ressalta Castro.

A representante da Assotram Melissa Castro (Reprodução/Arquivo Pessoal)

A Assotram existe desde 2017, com o objetivo de articular e promover iniciativas de transformação social, visibilidade e cidadania para travestis e pessoas trans no Estado. A associação já contribuiu para a retificação de registros de nascimento de 40 travestis, mulheres e homens trans, por meio de um mutirão realizado em 2020. Recentemente, as representantes da associação foram empossadas como adjuntas no Conselho Estadual de Saúde, onde realizam reuniões mensais e promovem ações de sensibilização junto a travestis e mulheres trans profissionais do sexo em seus locais de trabalho.

“Desde janeiro de 2018 promovemos workshops relacionados ao Dia da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro. Este mês é tratado com especial dedicação e reflexão, pois marca um período – como tantos outros – de luta e resistência pelo reconhecimento de nossos direitos, nossa cidadania e nossas identidades. Seguimos comprometidas em fazer ainda mais, de forma contínua e por tempo indeterminado”, afirma Melissa.

Leia mais: Pessoas trans ainda sofrem barreiras para emprego formal no Brasil
Editado por Adrisa De Góes

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