Danielly, Nataly e Lola: apenas um de três casos de violência envolvendo mulheres trans de Mogi resultou na prisão do suspeito - Globo

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Danielly Barby tinha 24 anos quando foi assassinada depois de um programa sexual, em junho de 2016. Quatro anos mais tarde, a jovem Nataly Lily, de 23, desapareceu após ser contratada, também para um programa. No ano seguinte, Lola Santos, de 51 anos, foi encontrada morta e com sinais de violência no próprio apartamento.

Em comum, as três são mulheres transexuais de Mogi das Cruzes, vítimas do ódio e da violência. No entanto, essa não é a única similaridade. De acordo com respostas enviadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) a pedido do g1, anos depois, em apenas um dos casos o suspeito foi preso, enquanto os outros continuam sem solução.

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Segundo o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a demora das investigações em casos que envolvem a população LGBTQIAP+ são um exemplo do descaso. Um comportamento que parte do Estado e da própria sociedade, tornando as vítimas invisíveis e, consequentemente, reduzindo suas lutas.

Para ele, faltam políticas para que essas ocorrências cheguem ao conhecimento público e sejam tratadas da forma correta. São resultado da LGBTfobia, do machismo e da violência que acompanham essa parcela da população desde a infância e à coloca em situações de extrema vulnerabilidade (confira a entrevista completa abaixo).

Danielly Barby: assassinada após programa no centro da cidade

Danielly Barby foi assassinada em junho de 2016, na região central de Mogi, quando saía de um hotel — Foto: Reprodução/TV Diário

A travesti Danielly Barby tinha 24 anos quando foi morta a tiros na manhã do dia 25 de junho de 2016, em Mogi das Cruzes. As investigações apontam que ela entrou em um hotel da região central, por volta das 5h20, acompanhada de um policial militar. George Silva, na época com 29 anos, teria a contratado para um programa sexual.

Câmeras de segurança registraram o suspeito deixando o local cerca de 10 minutos depois. Em seguida, a vítima vai embora. O suspeito anda até a esquina. Logo em seguida chega Danielly, que caminha na mesma direção e é surpreendida com um tiro na cabeça. Ela morreu na hora, enquanto o autor do disparo correu na direção da estação central de trem.

George foi preso quase quatro meses depois do assassinato, mas foi liberado após uma audiência de custódia. Em fevereiro de 2017, a Polícia Civil informou que ele estava em prisão preventiva. Já o julgamento dele foi marcado para setembro de 2019, mas foi adiado após a inclusão de novos documentos no processo.

O g1 perguntou para o Tribunal de Justiça se houve julgamento, mas a resposta foi de que o caso tramita em segredo. O Fórum Mogiano LGBT disse ter sido informado de que o acusado foi julgado e condenado em 2020.

Nataly Lily: contratada para o sexo e nunca mais vista

Nataly Lily desapareceu no dia 12 de dezembro de 2020, em Mogi das Cruzes. — Foto: Nelson Carvalho Domingos/Arquivo Pessoal

O caso aconteceu em 12 de dezembro de 2020. Segundo o boletim de ocorrência, Nataly e uma amiga, também transexual, foram contratadas para um programa. No local, um sítio às margens da Avenida das Orquídeas, elas foram baleadas. A amiga conseguiu fugir, ainda ferida, e foi levada para o Hospital Luzia de Pinho Melo. Nataly desapareceu.

Em fevereiro de 2021, a Justiça decretou a prisão temporária de uma mulher e três homens pela suposta participação no cárcere, sequestro e desaparecimento da jovem. Eles são Vanessa Silva Vieira, Danilo Nascimento Batista, conhecido como "Cocão", Caio Cleiton Rodrigues Silva, conhecido como branquinho, e Carlos Renato Rodrigues Silva, conhecido como "Gó".

Na época, o delegado Rubens José Ângelo explicou que o irmão dos suspeitos teria contratado Nataly para um programa, mas que houve um desacordo e que ele ficou machucado. Os familiares, então, arquitetaram uma vingança e simularam contratar a jovem para levá-la à emboscada. Ela teria sido morta em uma área de mata, mas o corpo não foi encontrado.

Segundo a SSP, os quatro continuam foragidos.

Lola Santos: encontrada morta dentro da própria casa

O corpo de Lola Santos foi encontrado no apartamento dela, no Jardim Universo, em Mogi. — Foto: Reprodução/Redes Sociais

Aos 51 anos, Lola Santos foi encontrada morta no apartamento em que morava, no Jardim Universo, na noite do dia 28 de agosto de 2021. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Militar foi chamada por vizinhos da vítima, que sentirem mau cheiro vindo do interior do imóvel.

Ao entrar no local, os agentes encontraram o corpo em estado de putrefação e a residência revirada. De acordo com o Fórum Mogiano LGBT, a vítima tinha sinais de violência. As investigações seguem pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) e não há informações de suspeitos.

Sucessão de vulnerabilidades

Bandeira da comunidade LGBT — Foto: Pixabay

Dennis Pacheco explica que a demora das investigações e a falta de solução são resultados de uma sucessão de vulnerabilidades, nas quais a população LGBTQIAP+ é inserida de forma histórica. Situação que ocorre, especialmente, entre as pessoas transexuais e travestis, que são discriminadas desde a infância e acabam se envolvendo em situações de risco, como a prostituição.

“Existe uma configuração histórica que é transfóbica, cisnormativa, que coloca as pessoas trans nessa posição de diferente, de uma diferença negativa. Isso faz com que as pessoas as odeiem. São pessoas odiadas e perseguidas. O que a gente vê é que, sim, em inúmeros casos, essas pessoas são violentamente assassinadas com requintes de crueldade”, explica.

“São pessoas que têm negado o acesso à escola, pois são alvos de perseguição desde a infância. Crescem se identificando assim e são perseguidas ao longo de toda a vida. Muito recorrentemente são expulsas de casa, não encontram trabalho no mercado formal por conta da identidade de gênero, por conta do preconceito”.

Ele diz que a crueldade envolvendo os casos, principalmente das vítimas que vivem da prostituição, evidenciam, inclusive, a negação do próprio desejo do autor. São pessoas que usam as vítimas como objetos sexuais e depois matam, na intenção de deixá-las em uma posição de inferioridade, como se não fossem dignas de respeito.

“Esses tipos de crime querem aniquilar a vítima individualmente e também sua existência no plano simbólico. É como se mandassem um recado para quem se solidariza com elas, que se identifica com elas, além de fazer com que suas memórias sejam também aniquiladas”.

Além da agressividade, que costuma estar presente nos crimes contra pessoas LGBTQIAP+, Pacheco também destaca outra problemática: a do Estado. O pesquisador explica que falta interesse em tipificar os crimes de maneira específica, fornecer dados e tratar as ocorrências como consequências da discriminação. Sem essas ferramentas, a criação de políticas públicas se torna difícil, pois as vítimas se tornam invisíveis.

“Olhando para produção de dados, no que diz respeito a essas vítimas, ao olhar pra elas, dá pra dizer que existe um descaso imenso do Estado. [Exemplo disso] nos últimos dois relatórios de violência LGBTQIAP+ do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo não deu qualquer informação sobre vítimas de homicídio, lesão corporal e estupro. Isso é reflexo de um descaso. É impossível a gente criar políticas em cima de uma característica que a gente não conhece”.

“É possível invisibilizar essas características no boletim de forma que não haja informação sobre o contexto do crime. Isso vai ter desdobramento no processo de investigação, no próprio processo judicial. A invisibilização dessas vítimas, dessas características de orientação e identidade, não é trivial. Isso vai implicar diretamente no destino das investigações”.

Dennis estima que pelo menos 50% dos homicídios contra pessoas da comunidade deixem de ser notificados. Isso porque, muitos casos podem chegar ao conhecimento público como assassinatos “comuns”, como se não houvesse preconceito na motivação. Um problema que poderia ser solucionado se os boletins de ocorrência trouxessem detalhes de orientação e identidade de gênero e se as delegacias estivessem mais preparadas para esses casos.

“A gente tem alguns estados criando de delegacias especializadas em crimes de ódio, crimes de violência contra a população LGBTQIAP+, que costumam envolver esses assuntos. Elas acabam desenvolvendo práticas e culturas organizacionais, além de disseminar conhecimento de forma ampla. Só que existe o problema que essas delegacias são poucas”.

“Essa é uma política importante, mas ela precisa vir acompanhada de processos de formação pra disseminar conhecimento. Pra sensibilizar os profissionais quanto às demandas dessas vítimas. Na verdade, nem sei se sensibilizar é a palavra certa, porque essa é uma questão de direito, de acesso ao direito, para que possam atender de forma mais adequada”.

“Acho que é um problema que precisa ser abordado transversalmente. É preciso promover educação sexual nas escolas, desmistificar, é preciso que essas populações parem de ser demonizadas, sejam entendias e tratadas com os devidos respeito”.

Questionada sobre a forma como os casos envolvendo LGBTQIAP+ são registrados e tratados pela polícia, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou por meio de nota que as forças policiais recebem treinamento constantemente para aprimorar o atendimento a ocorrências com o objetivo de respeitar e preservar a identidade de gênero das vítimas.

"Todos os distritos policiais no Estado de São Paulo são aptos a registrar e investigar crimes contra vítimas LGBTQIA+. O sistema de polícia judiciária (SPJ) de todas as unidades tem campo específico para incluir o nome social e a indicação de "homofobia/transfobia" no registro da ocorrência", destacou. A pasta informou ainda que também foram inseridos campos no SPJ para indicação de identidade de gênero e orientação sexual.

"Ainda, após o decreto 65.127/2020 estabelecer mudanças no atendimento das DDM este ano, as vítimas são acolhidas por gênero feminino, não mais pelo sexo biológico, estimulando as mulheres cis, trans e travestis vítimas de violência doméstica a também procurarem as DDMs. A inclusão de dados nos registros permite o levantamento de estatísticas de delitos motivados por homotransfobia, possibilitando a elaboração de políticas públicas de enfrentamento à todas as formas de discriminação".

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