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Imagine um leão. De dentes à mostra, corpo em tensão, pronto para o ataque. Esse é o bicho real, vivo, pulsante, perigoso. Agora imagine o mesmo leão, mas transformado em bicho de pelúcia: fofinho, dócil, inofensivo, que se pode apertar, exibir, abraçar sem risco algum. O primeiro existe na selva, o segundo na estante.
Essa é a metáfora do modo como muitas pessoas, instituições e projetos sociais se aproximam das populações marginalizadas: querem estar perto, mas apenas quando estamos domesticados. Querem a travesti dócil, o morador de rua agradecido, o precarizado obediente, a preta chorosa, o migrante silencioso. Não suportam ouvir um “não”, uma resposta atravessada, uma raiva legítima. Querem lidar com o bicho de pelúcia, não com o leão. Quando sujeitos que tiveram suas formações e estradas pavimentadas chegam nos espaços seu grito é diferente. Quando um corpo abandonado chega nos mesmos espaços o mix de emoções não cabem em palavras dado sua circularidade arrebatadora.
Na psicanálise, Freud já apontava para o que chamou de narcisismo das pequenas diferenças: a tolerância ao outro só se mantém enquanto não fere o espelho narcísico do mesmo. Melanie Klein também nos ensinou sobre as posições esquizoparanóide e depressiva: ou o sujeito é idealizado como pura vítima, ou é demonizado como ameaça — nunca reconhecido em sua ambivalência humana. Winnicott, por sua vez, lembrava que só existe autenticidade quando há espaço para o verdadeiro self. Mas a sociedade, ao que parece, não suporta o verdadeiro self das travestis, dos moradores de rua, dos corpos dissidentes.
O jogo é perverso: oferecem cuidado enquanto exigem silêncio. Oferecem visibilidade enquanto exigem docilidade. É a mesma lógica do bicho de pelúcia — só serve se não morde.
Escrevo não apenas como doutora em Educação, psicanalista, pedagoga, jornalista, biomédica e letróloga. Antes de tudo, escrevo como uma travesti de 50 anos que nasceu com sífilis congênita e perdeu a visão de um dos olhos. Uma criança que foi criada sob queimaduras de cigarro, sob surras, sob o estresse de rebanho produzido por uma mãe narcisista que me usava como objeto de manipulação para estar com amante. Essa menina-travesti só não se perdeu porque teve uma avó: mulher simples, mas que soube dar amor, educação e colo nos primeiros anos. Foi dela que veio o respiro, a sobrevivência, o mínimo de chão para que eu pudesse chegar até aqui.
É justamente essa história que me faz rejeitar a lógica do bicho de pelúcia. Porque resistir é assumir o rugido, não apenas o sorriso. É dizer que nem toda travesti cabe no figurino da passividade. É afirmar que moradores de rua não estão ali para agradecer a esmola; que PcDs não existem para inspirar superação; que corpos precarizados não são adereços de projetos bem-intencionados.
Se a sociedade quer o leão de pelúcia, terá que aprender a lidar com o leão real. O que nos salva não é a domesticação, mas a potência de existir com tudo o que carregamos: raiva, dor, afeto, desejo e memória.
Travestis não são de pelúcia. Moradores de rua não são de pelúcia. Nenhuma vida precária cabe no molde macio que o poder deseja. Somos leões vivos — e é o rugido que faz política.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.