"As Malditas": uma viagem ao inferno das prostitutas travestis na Argentina - Observador

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No livro "As Malditas", Camila Sosa Villada traça uma viagem iniciática pelo mundo da prostituição travesti num parque onde se ergue uma estátua de Dante. Auto-biografia ou fábula, nunca saberemos.

"Um livro não pode fazer justiça. A justiça seria uma compensação económica, substancial, que lhes permitisse descansar", diz Camila Sosa Villadai

"Um livro não pode fazer justiça. A justiça seria uma compensação económica, substancial, que lhes permitisse descansar", diz Camila Sosa Villada

"Um livro não pode fazer justiça. A justiça seria uma compensação económica, substancial, que lhes permitisse descansar", diz Camila Sosa Villada

“Disseram que éramos mulheres trans, transexuais, transgénero. Impunham novamente a sua academia vinda do Norte, enquanto aqui tratávamos de sobreviver (…) de nos alimentarmos nem que fosse de terra. Exibiram teorias a nosso respeito para tornar mais higiénica a nossa existência (…) por isso não digo mulheres trans, não falo em termos cirúrgicos como um bisturi, porque esses códigos não dão fé do que aconteceu às travestis nestas regiões, desde os índios até esta porcaria de civilização. Recupero as pedradas e as cuspidelas, recupero o escárnio (…) As Malditas são travestis e não querem, nem nos seus piores momentos, ser chamadas de outra forma”. É com esta nota assertiva e desafiadora que Camila Sosa Villada abre o livro As Malditas, um romance-fábula acabado de editar pela BCF.

Alguém disse que era preciso ter cuidado com as pessoas destruídas, pois elas sabiam que poderiam sobreviver, mas em As Malditas percebemos que algumas não conseguem e outras só sobrevivem porque se transformam noutra coisa. Camila Sosa Villada, hoje atriz e escritora, viveu como prostituta travesti durante vários anos até se estrear com uma peça de teatro (“Carnes Tolendes”). E este, que é o seu primeiro romance, ainda que supostamente seja parcialmente autobiográfico, é suficientemente ágil para brincar como as fronteiras dos géneros literários tal como ela durante anos brincou com a as regras dos géneros sexuais, sendo um rapaz que estudava Comunicação e Teatro na universidade de Cordoba, na Argentina, e à noite planava sobre saltos altíssimos no parque Sarmiento, onde pontifica uma estátua de Dante e se materializa a vida de um grupo de mulheres tocadas pela maldição de terem nascido num corpo que a sociedade não reconhece, por ser simultaneamente masculino e feminino.

É pois nessas zonas onde nada é preto ou branco, mas onde o hibridismo e a metamorfose é lei, que nasce este livro, intenso, comovente, desafiante mas, sobretudo, plural, pois nestas mulheres malditas podemos reconhecer todos os excluídos do mundo, ou, como diz a autora na entrevista que lhe fizemos, os que estão fora da graça [divina]. E são muitos. Sendo um tema que está na moda, este poderia ser apenas mais um romance escrito por alguém que olha de fora e usa a experiência e a dor alheia para vender livros. Não é o caso. Aqui tudo está em carne viva e a dor não se drena, nem pelo queixume, nem por frases bem elaboradas. Também foge do facilitismo panfletário e prefere territórios mais tortuosos onde a fábula e o realismo mágico se misturam com a auto-biografia, a reportagem, a poesia. É uma livro escrito a partir do interior das noites sem fim, no meio de todas as violências — desde logo a familiar, depois a do mundo em geral e até a das travestis uma sobre a outras. Só há um lugar seguro que é a casa da Tia Encarna, de 178 anos, que uma noite recolheu no fundo do parque uma bebé abandonada. A partir daqui, “o que a vida não dá, o inferno empresta”; todos ali são monstros, nem que seja porque o mundo os ensinou a verem-se assim. Mas, por isso mesmo, são incapturáveis, aprenderam que “é mais fácil escapar por túneis do que saltar muros” e Camila Sosa Villada é ela própria incapturável ao rejeitar o papel de heroína trágica, ao preferir a ironia ao engajamento, a explorar sem medo as fronteiras entre real e ficção nas entrevistas que dá.

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