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"Não tenho escolha, só quero permanecer viva nesse momento. Estou me afastando da minha ideologia de vida, com a qual eu trabalhei, para me manter viva. Estou saindo do Brasil". O depoimento é da técnica em enfermagem Fernanda Falcão, de 29 anos.
Travesti, mulher preta e ativista pelos direitos humanos, ela decidiu pedir asilo à Espanha para não ser assassinada, depois de inúmeras ameaças de morte e dois atentados dos quais, por pouco, conseguiu sair viva.
Fernanda segue o exemplo de Maria Clara de Sena, que em 2017, em situação semelhante, saiu do Brasil e foi morar no Canadá por causa das ameaças de morte.
As ameaças de morte começaram para Fernanda no dia 8 julho de 2021, quando, após receber denúncias, foi com outros defensores de direitos humanos a uma casa de prostituição em Maria Farinha, em Paulista, no Grande Recife.
"Eram meninas traficadas, vítimas de exploração sexual. Uma delas, muito jovem, teve o cabelo raspado. Estavam trabalhando na pandemia. Tiramos elas de lá e levamos para a delegacia. No mesmo dia, metralharam a frente da minha casa, tentaram invadir e disseram que iam me calar", disse.
Nesse momento, Fernanda deixou a residência em que vivia, em Paulista, e passou a viver em casas de amigos e outros locais seguros para evitar que os agressores a encontrassem.
Nessa época, segundo ela, também foi pedida proteção ao estado e ela ingressou o Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH), criado em 2012 por lei estadual, responsável por articular medidas de proteção e defesa à vida de pessoas ameaçadas de morte devido ao ativismo.
O ato de inclusão de Fernanda no PEPDDH só foi assinado pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos no dia 18 de outubro de 2021, após ofício enviado pela delegada da Mulher Maria Pontes Vilasboas Freitas.
Fernanda Falcão — Foto: Reprodução/WhatsApp
Diversas instituições que trabalham com direitos humanos, parlamentares e até a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pernambuco também se manifestaram em ofícios pedindo ao estado proteção para Fernanda.
O g1 entrou em contato com o o governo para saber o que foi feito para auxiliar a ativista, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
Meses depois, em novembro, quando já estava inclusa no programa de proteção, Fernanda Falcão sofreu mais um atentado, dessa vez em plena luz do dia, às 14h, no centro de Paulista, no momento em que foi pagar uma conta numa agência da Neoenergia, antiga Celpe.
"Quando saí da loja, eles estavam lá. Tentaram me colocar dentro de um carro, me puxando pelo braço. Eu corria e eles me seguravam pelos cabelos. A cada vez, caíam tufos de cabelo da minha cabeça. Minha cabeça ficou sangrando. Até hoje, meses depois, ainda sinto muitas dores, porque foram muitas feridas", declarou.
Depois de correr muito, Fernanda conseguiu se desvencilhar dos agressores. Imediatamente depois, segundo ela, sofreu outra violência. Dessa vez, da polícia.
"Ninguém parou para me ajudar. Eu parei uma viatura da polícia e um PM me respondeu 'ah, eles só queriam um programa'. Nesse momento, eu desabei. Sentei no chão, chorando, e um rapaz perguntou se eu tinha sido assaltada. Me colocou numa kombi e me deixou em Tabajara [em Olinda]. Aí, Wladimir me buscou e me ajudou", disse.
Maria Clara de Sena (à esquerda), Wladimir Reis (no centro), Fernanda Falcão (à direita) e membros do GTP+ — Foto: Reprodução/WhatsApp
O Wladimir a quem Fernanda se refere é Wladimir Cardoso Reis, coordenador do Grupo de Trabalhos em Prevenção PositHIVo (GTP+), no qual Fernanda trabalha como ativista. A ONG atende milhares de pessoas vivendo com HIV e Aids e busca fornecer serviços de cidadania. Ele também é presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDH).
Depois de meses, Fernanda decidiu sair do Brasil, pois sabia que ficar implicava na iminência de morte. Ela tentou, assim como Maria Clara de Sena fez quatro anos antes, se refugiar no Canadá. As duas mulheres são amigas e encontram conforto uma na outra.
"Maria Clara é quem me dá todo apoio psicológico. Lá atrás, ela quem me contou que eu tinha direitos e hoje me diz que eu tenho o direito à vida. Tentei ir para o Canadá, mas o processo, lá, é muito burocrático. Pelo trabalho com direitos humanos, tenho contato com muita gente, e essas pessoas resolveram para mim o asilo na Espanha. De lá, o plano é mudar para o Canadá", afirmou Fernanda.
Apesar de estar mais perto de estar em segurança, o sentimento de Fernanda é o de frustração. Ela, por mais uma vez, vai trancar o curso de graduação em enfermagem, que tenta finalizar desde 2010, quando foi presa.
"Fui para o sistema prisional porque era mais uma prostituta nos pontos do Recife. Pagava meu bacharelado com a prostituição. Um dia, os policiais me revistaram, me bateram e cortaram meu cabelo. A gente pagava R$ 50 dia sim, dia não, aos PMs", contou.
Na época, recordou, ficou revoltada. "Fiquei brava e disse às meninas que quem pagasse ia apanhar. Em retaliação, me levaram presa. Disseram que eu estava com 18 pedras de crack e R$ 36. O dinheiro tinha sido de um oral que eu tinha feito, o único dinheiro que eu tinha para comer e voltar para casa", declarou.
Fernanda Falcão pediu asilo na Espanha para fugir de ameaças de morte — Foto: Alfeu Tavares
Fernanda disse que se sente vítima não somente das pessoas que, ao longo da vida, a agrediram, mas também do estado e das instituições. Na prisão, ela disse que foi estuprada e que não teve o direito de se defender.
"Não vivemos uma guerra, porque, numa guerra, algum dos lados pode se posicionar. O que vivemos é um genocídio. Eu nunca tive direito de defesa. Nunca tive tanta vontade de viver como eu tenho agora. Tanta gente morre antes de pedir socorro. O estado não tem estrutura, é falido para proteger um defensor de direitos humanos. A gente defende pessoas, coloca nossa vida em risco para garantir outras vidas. O direito à vida é um dos primeiros itens da Constituição", disse.
O g1 entrou em contato com as secretarias de Defesa Social e de Justiça e Direitos Humanos para saber de que forma o estado tem apoiado Fernanda e questionar sobre as denúncias feitas por ela, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem. O Consulado Geral da Espanha também foi procurado, mas ainda não respondeu.