Na tarde desta sexta-feira (5), o Instituto de Psicologia da USP viveu uma cena histórica. Um auditório lotado de mulheres trans e travestis, reunidas não apenas para assistir a uma defesa de doutorado, mas para transformá-la em ato coletivo, ritual de memória e conquista.
No centro, estava a dra. Paola Alves de Souza, educadora comunitária e pesquisadora que há anos se dedica a afirmar a vida trans como potência. Sua tese carrega um título que já anuncia o impacto: “A gilete do discurso não cabe na boca das travestis: uma arqueogenealogia da retina cisgênero que fabrica tumbas”.
Entre emoção e densidade teórica, Paola reafirmou ser foucaultiana, traçando uma crítica radical às engrenagens que tentam enquadrar, patologizar ou silenciar existências trans. Mas também abriu espaço para outros sopros: citou Deleuze e Guattari, evocou a “matilha” como forma de vida coletiva que resiste às normas e, sobretudo, convocou o público a partilhar da criação.
O clima era de festa, mas também de denúncia e memória. Paola lembrou que esta tese tem “15 anos de atraso” — tempo que corresponde a momentos que marcaram a sua vida, como quando reconheceu-se como mulher transexual. E contou que parte da pesquisa foi atravessada pela pandemia de Covid-19. Inicialmente, seu foco seria a potência do programa Transcidadania, mas o luto mudou o rumo. “Muitas das entrevistadas não sobreviveram. Elas não estão mais aqui. Essa ausência também atravessa estas páginas.”
Cada frase arrancava reações do público: lágrimas, gritos, palmas. O auditório não era apenas espaço de ciência — era território de vida.
A tarde terminou como começou: com intensidade. O espaço acadêmico, tantas vezes visto como distante e excludente, foi tomado por vozes que por séculos ficaram de fora. Ali, a defesa de uma tese virou celebração, ato político e ritual de passagem.
Paola Souza segue sua caminhada acadêmica, mas também comunitária. Educadora na Casa da Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo, ela transforma em prática diária aquilo que sua tese anunciou: a vida trans não cabe em gavetas, diagnósticos ou discursos prontos. Ela escapa, insiste, cria.
E naquele auditório, ficou marcado: nenhuma travesti será silenciada pela gilete do discurso.
Redação da Agência de Notícias da Aids